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Ribeiro, Renato Janine. (2003). A Universidade e a Vida Atual — Fellini não Via Filmes. Campinas/SP: Campus.216 pág. Resenhado por Vanilda Paiva18 de novembro de 2003Fellini podia não ver filmes, mas professor universitário não tem jeito – não pode deixar de ler livros. E assim, eis que me caiu em mãos o cultivado volume de ensaios de Janine Ribeiro sobre a Universidade, com a solicitação de uma resenha. Inicialmente pensei: mais um! Tenho que arranjar tempo. Mas, viciada em leitura, nalgum momento abri o livro e gostei do que li. Até porque o autor tem a rara virtude de poder argumentar de forma erudita sobre temas do cotidiano e passar com naturalidade do mundo acadêmico, seus percalços, vícios e não poucas bobagens, às transformações concretas que continuam ocorrendo no plano do trabalho; ir dos vôos freudianos às difíceis escolhas afetivo-estratégias, conscientes ou não, que foram se impondo aos habitantes de boa parte do globo na segunda metade do século XX e dos primeiros anos do século XXI, os quais tiveram (e, em certa medida, ainda estão tendo) o privilégio de viver as alegrias e a liberdade da idade de ouro da humanidade e o desespero de perceber melhor a falta de linearidade da história e a face de Jano de suas conquistas. Apesar do caráter ensaístico dos textos, que têm origem em momentos diferentes da vida do autor, eles estão encadeados de forma a conduzir o leitor de questões teóricas e abstratas a um conjunto de reflexões sobre outras, mais concretas, que incidem sobre a vida universitária e profissional em nossos dias. Ele certamente não pretende articular todos os temas que levanta na parte inicial do livro diretamente com questões ligadas à formação universitária, mas introduz na discussão o desejo na escolha da profissão, criticando o afundamento simultâneo do senso de sacrifício e de transcendência. Embora devamos reconhecer que o mundo, neste início de século XXI, deixa ver traços de conservadorismo que, em algum momento, pensamos vencido pelo desejo nos “25 anos gloriosos”, a insegurança, a incerteza, a instabilidade do mundo de hoje reforçam a derrocada de ambos. O jovem quer hoje, aqui e agora, ter e viver o que outras gerações levaram anos para conseguir, e que conquistaram (ou não) com sacrifício legitimado pela certeza que tinham sobre os rumos da história e graças às possibilidades abertas na segunda metade do século XX. Á medida em que a ideologia vivida pelas camadas mais pobres (aproveite hoje tudo o que possa porque não se sabe se haverá amanhã) ultrapassa a barreira das classes trabalhadoras (no sentido de trabalho formal) e desemboca nas camadas médias, é o conjunto da sociedade que se despede da disposição ao sacrifício e da abertura à transcendência. A classe A nunca precisou delas, como não teve que fazer escolhas profissionais que considerasse consistentes. O jovem de hoje não se identifica com o sacrifício de seus pais, ontem; ele inveja pais bem sucedidos hoje e, ao se perguntar sobre o futuro incerto, quer acesso ao consumo de todos os bens contemporâneos disponíveis. Mesmo quando consegue sublimar o sentimento avassalador de dúvida sobre o futuro e escolhe profissões eventualmente ao gosto dos pais, está frente a frente com a instabilidade profissional futura – por isso mesmo, concordo com a idéia de que a evasão é um “crime” menor que noutros tempos. Mas não é porque queiramos ser a favor do inesperado (que, felizmente, existe e enche a vida de esperança): ele se transformou num dado maior da realidade de cada um a curto prazo! Claro, não estou minimizando o inesperado ontem. Afinal,
toda a geração de intelectuais de hoje com mais de 50
anos entrou na universidade para ser professor secundário
– simplesmente porque estudou na época de difusão
do ensino secundário público. Tornou-se
pós-graduado porque precisou exilar-se e recebeu uma bolsa,
porque se criou a pós-graduação no Brasil e
títulos passaram a ser exigidos; escreveu teses que viraram
livros, fez concursos que já não eram mais para o
nível secundário. Traçou seu destino junto com a
história possível da classe média ao longo das
décadas. Os jovens de hoje também vão escrever
suas vidas assim. A diferença está no desgaste da
esperança, da crença de que os bens que o mundo lhes
apresenta virão acompanhados do acesso aos mesmos, da
convicção de que podem assentar parte relevante de sua
auto-estima no reconhecimento do próximo. A consciência
de que a sorte individual oscila como num cassino e que a
gangorra social e profissional é futuro certo relativiza
padrões morais e coloca num mesmo saco jovens de
praticamente todas as classes sociais. O “milagre da
obediência civil” não está encontrando seus
limites, mas certamente já não envolve as mesmas
proporções e setores das sociedades. Mas certamente as
classes médias podem contar com melhores expectativas e
têm, de fato, maiores chances de poder deixar de ser
reféns no seu processo de formação inicial
(inicial, no sentido de que outras formações
possivelmente serão exigidas de cada um ao longo da vida) ou
mesmo posterior. Os espíritos estão inquietos, mas
não é da inquietude que Janine Ribeiro pretende.
Estão inquietos pela consciência de que não
existem certezas, nem pilares sólidos. Temem. E isto que
É verdade que os cursos universitários ainda estão presos às profissões, mas não por tão longo tempo como no passado. As fronteiras já se diluíram muitíssimo e as profissões foram se desmistificando – entre outras razões, pela ação dos veículos de comunicação de massa e pela difusão científica que tornaram segredos profissionais há muito cultivados em verdadeiros segredos de polichinelo. Também é verdade que são poucos os que lêem toda a obra de um autor ou que os lêem no idioma original. Mas não há dúvida de que o conhecimento de idiomas se ampliou enormemente, que não é possível comparar o que o país publica hoje com o que publicava há 50 anos – quando era possível identificar até quem havia comprado tal obra em tal idioma e quem a tomara emprestado! No entanto, se considerarmos os países desenvolvidos – por exemplo, a Alemanha e sua tradição de minúcia e de amplitude, onde os alunos precisavam ler toda a obra dos autores – estamos frente a uma perda inegável. O que os jovens de hoje vêem de forma diversa é a vastidão que têm diante de si, com verdadeiros exércitos produzindo livros, home-pages, informações e conhecimentos novos (muitas vezes instrumentais, que precisam ser dominados). O que se perdeu só pode ser compensado com escolhas, com uma decisão sobre o que é essencial na formação do jovem culto e inquieto. Podemos nós fazer por eles tais escolhas? Esta geração acredita que sim, mas não estou segura de que as gerações subseqüentes pensem da mesma maneira. Janine Ribeiro trava uma longa discussão sobre o papel da revisão de trabalhos por pares e de seus limites nas Humanidades. Sua argumentação é convincente, mas o problema está em conseguir alguma fórmula que permita um juízo adequado do que deva ou não ser financiado. No fundo, tudo tem suas vantagens e desvantagens. O financiamento de pesquisadores conhecidos pode não levar a nada de novo e a estimular as “panelinhas” e grupos de interesse. Mas, um ou outro sempre escapa das determinações do meio... O risco é pelo menos similar no financiamento dos novos, cuja produtividade e originalidade nem sempre se confirmam. A avaliação por ímpares poderia ser, eventualmente, conjugada com a revisão por pares, mas a verdade é aí entram preconceitos por áreas, visões deformadas de autores (para o bem ou para o mal) por especialistas de outros setores e mazelas diversas. A rapidez dos procedimentos de escolha termina confirmando fórmulas tradicionais cuja validade pode ser tão questionável quanto outras, novas. Trata-se de um dilema para quem tem que decidir – e este era o caso do autor quando escreveu sobre o assunto. A pesquisa em ciências humanas incide diretamente sobre a vida social através de sua difusão não apenas através de jornais, home-pages, etc. mas assume forma política através de sua incorporação em programas partidários e de governo. Neste sentido cabe ao cientista social “perturbar as consciências” mas também ordenar, sistematizar, fazer e comprovar hipóteses, argumentar, de forma a dar inteligibilidade à “desordem de que se nutre a vida”. Creio que a essas alturas já ninguém pretende que a epistemologia das ciências exatas e biológicas possa valer para as ciências humanas – esta é uma discussão que, no século XX, foi levada às últimas conseqüências desde o Círculo de Viena e nela se estabeleceu de forma firme a imbricação entre tais ciências e ideologia, entre sujeito e objeto. Faz tempo que o positivismo perdeu para interesses, desejos e “otras cositas más”. A dificuldade está em contrariar ilusões, já diria François Furet, e inovar sem sofrer isolamento, a perseguição por pares, o impacto dos preconceitos, de pequenos poderes estabelecidos e tolices de toda ordem. Mais usual, em muitos campos, é a produção de – como diria meu amigo Alcione Araújo – duplicatas de todo tipo. Se as duplicatas são inócuas, qualquer inovação no discurso que ganhe foro de laicização culta ou de transferência do conhecimento á sociedade pode terminar se transformando em risco político. Afinal, as ciências humanas possuem seus mitos, reverenciam a autoridade, mas têm também – felizmente - seus iconoclastas e seus Galileus. O cientista social deveria, de fato, falar à sociedade como parte de sua responsabilidade social. Mas não precisa, necessariamente, falar nem a partir do Estado nem das Ongs, idealizadas pelo autor. Pode ser, por exemplo, independente – ligado a valores intelectuais, políticos e morais. É difícil, mas não impossível. Em última instância qualquer um que esteja convencido da justeza de suas idéias considera adequado que elas ultrapassem as barreiras da universidade e aterrizem no Estado e suas políticas e se esparramem pela sociedade. Parece, no entanto, que as Ongs, definidas por Janine Ribeiro como um para-estado, uma duplicação do poder público não estatal, um novo espaço de organização social e de formação da opinião pública, são abstratamente supervalorizadas. Nos anos 80, quando se contaram as Ongs atuantes no país, elas não chegavam a 200. No Rio de Janeiro existiam menos de 10 grandes Ongs; em São Paulo o número era menor. Eram sérias e muitas viviam de financiamentos confessionais anteriores à queda do muro de Berlim. O problema dos financiamentos não confessionais sempre foi o seu pragmatismo político – mesmo quando com visão de longo prazo. Nem sempre tais apoios abrigam espíritos demasiado inquietos, porque a liberdade pode não caber nas temáticas e nos objetivos. Nos anos 90, quando os financiamentos europeus migraram para o Leste, muitas Ongs tiveram que buscar suporte no Estado local. Feliz coincidência! A transformação das Ongs em heroínas da democracia está indissociavelmente ligada ao programa de enfraquecimento dos Estados periféricos e à privatização dos serviços essenciais (aqueles que toda a população obrigatoriamente tem que consumir) e de políticas sociais, à geração de um mercado secundário de trabalho. É apenas um elemento no retorno de tempos liberais, nos quais não há pejo em falar em filantropia, ao invés de direitos. Organismos multilaterais nos passaram a lição de casa e Ongs se abriram como mil flores com financiamento estatal. Fenecerão à medida em que este mingúe. E não é um paradoxo que elas sejam estimuladas ao mesmo tempo em que se desbaratou a idéia de um Terceiro Mundo. É certo que, como diz o autor, quem perdeu a batalha foi o Segundo Mundo e não o Terceiro. O que ele parece não ter percebido é que o Terceiro só existia porque havia o Segundo: sem um confronto básico, a alternativa não era necessária. Mas os países desenvolvidos captaram esta verdade de forma imediata e passaram, já no início dos anos 90, a discutir as formas que tomaria o confronto Norte-Sul. Claro que não se demonstrou que os ideais do Terceiro Mundo não valessem. Ele afundou politicamente – independente da validade de seus aspectos específicos – com o mesmo universo que lhe deu origem. Viver a dependência pretendendo a internacionalização acadêmica, a troca de idéias em redes horizontais, é um sonho para um futuro distante ou um campo de investimento árduo e incerto de pessoas e grupos. Em meio a tais contradições entra a proposta de um curso de humanidades capaz de formar intelectuais para enfrentar as imensas mudanças por que passa o mundo de hoje com liberdade de pensamento e invenção, apesar da angústia provocada pelo desenraizamento que tais transformações produzem. Neste caso, a tese do autor é a mais contemporânea possível. O mundo que se levanta frente a nós não é um mundo de especialização nem mesmo para a minoria que terminará ultra-especializada: esta rota dependerá da profundidade e da solidez da formação geral. O mercado em transformação e em retração só absorverá quem receber excelente formação geral, em humanidades mais que em outras áreas específicas. As características que, antes, supúnhamos ser reivindicadas pelos defensores de uma Bildung emancipadora, tornaram-se moeda corrente não só do mercado formal de trabalho, mas da informalidade na qual cada um tem que ajudar a construir seja seu nicho de atividade remunerada ou simplesmente da atividade capaz de dar sentido à vida, independentemente do ingresso que proporcione. Pode ser que chegue um tempo em que até a renda mínima termine dependendo do espírito inovador. Por tudo isso, muitos cursos de humanidades, abertos, livres, serão necessários. Tanto quanto a preservação das universidades públicas como instituições qualitativamente diferenciadas, capazes de formar quadros do mesmo nível que universidades dos países desenvolvidos e de oferecer ensino gratuito num contexto mais amplo adverso aos segmentos pobres. Foi a sua difusão pelo país afora que permitiu alguma eqüidade e equilíbrio entre os Estados no que concerne à qualidade da formação e à geração de uma intelectualidade de caráter nacional. Foram os campi avançados difundidos pelos sertões de todo o país que – graças à existência de escolas básicas e médias públicas pelo interior – permitiram a alguns poucos, é verdade, uma trilha que vai do campesinato e da enxada à caneta e à tese de pós-graduação. O argumento de que os alunos nelas entram para “enriquecer” não é digno nem de intelectuais nem de autoridades. Afirmar que o ensino superior público abriga as elites porque 60% de seus alunos provém dos 20% “mais ricos” é querer ignorar a porcentagem dos que verdadeiramente detém a riqueza no país. Os 20% mais favorecidos englobam praticamente toda a classe média superior e média, com o que se constata que cerca de metade da matrícula tem origem social mais humilde. O país não tem por que cercear o acesso ao ensino superior ou fragilizar a formação de suas elites, qualquer que seja a sua extração social, nem restringir o acesso à universidade pública a uma classe média pagante. É certamente mais difícil formar alunos de origem mais humilde, mas as gerações de intelectuais que são produto do generoso período do pós-guerra sabem perfeitamente que nasceram daquela gratuidade e que devem a sua defesa às novas gerações neste país complexo e heterogêneo. O livro é uma proposta up-to-date. Enfrenta questões polêmicas, levanta outras tantas, mas deixa – ao final de sua leitura – o sabor da defesa da liberdade de pensamento, da recusa à sacralização de personagens e idéias, da avaliação e promoção constante da qualidade, da revisão da universidade que passa novamente a ter as humanidades como seu foco principal. Acerca da autora do livroRenato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, na qual também se doutorou, depois de defender o mestrado na Sorbonne. Acerca da autora da resenhaVanilda Paiva.
Estudou Educação, Sociologia e Romanística
na Universidade de Frankfurt/M, doutorando-se em
1978. É professora aposentada
da UFRJ e diretora do IEC. Foi diretora
do INEP, proreitora da UFRJ e secretária
regional da SBPC. Coordenou o Grupo de Trabalho
Educação e Sociedade do CLACSO.
Reseñas Educativas/ Resenhas Educativas publica reseñas de libros sobre educación, cubriendo tanto trabajos académicos como practicas educativas. Todas las informaciones son evaluadas por los editores: Editor para Español y Portugués Gustavo E. Fischman Arizona State University Editor General (inglés) Gene V Glass Arizona State University Reseñas Educativas es firmante de la Budapest Open Access Initiative. |
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