lunes, 24 de marzo de 2025

Corazza, Sandra Mara. (2002). Para uma filosofia do Inferno na Educação, Nietzche, Deleuse e outros malditos afins. Recensão por José Manuel Freire da Silva

 

Corazza, Sandra Mara. (2002). Para uma filosofia do Inferno na Educação, Nietzche, Deleuse e outros malditos afins. Belo Horizonte: Autêntica editora.

Páginas: 104
ISBN 972-9025-52-5

Recensão por José Manuel Freire da Silva

Resumo
Reflexão filosófica sobre o Inferno e a Educação, demolindo conceitos, espremendo e limpando conotações e significados acessórios, escalpelizando a carga histórica e cultural, pondo tudo em causa, num massacre de palavras, para que não sejamos mais os mesmos perante eles, presos deles, mas antes seus operadores, conscientes de que são isso mesmo, conceitos que manipulamos, utilizamos e veiculamos.

Desdobrando cada ideia, o livro desvenda contornos, desprende conotações iniciais e, em percurso ora circular, ora em espiral, entre sentimentos contraditórios e numa intenção-pensamento permanentemente anunciada, sempre dês-multiplicada em planos, em si mesma promessa, em si mesma encerrada, vai num crescendo, até postular um conjunto de enunciados sobre a mulher fazendo incursões por milhares de anos da sua figura e papel na cultura e civilizações humanas, chegando ao actual olhar da mulher sobre si própria, no mundo da Educação. E dando que pensar ao pensamento da educação e dos seus infernais.

Abstract
Philosophical reflection concerning Hell and Education, demolishing concepts, squeezing and wiping off connotations and accessory meanings, dissecting its historical and cultural load, questioning everything, in a massacre of words, so that we will not remain the same in their presence, as their hostages, but their operators instead, conscious that they are nothing else but concepts that we manipulate, use and convey.

Unfolding each idea, the book uncovers forms, disengaging initial connotations, sometimes in circular paths, sometimes in spiral paths, between contradictory feelings and intentions. The book goes in crescendo until it postulates a set of propositions about women, making incursions over thousands of years of her image and role in human culture and civilization, coming to our time looking to the figure of ‘woman” in the world of education. And giving the readers something to reflect on about education and its infernal entities.

Primeira aproximação à leitura

Qual a minha atitude perante esta obra, como leitor comum a que me equiparo? Passada a curiosidade inicial e a perspectiva de rememorar as ideias e os mitos sobre o inferno ao longo da vida pessoal, atraiu-me a promessa da reflexão filosófica contemporânea sobre o significado, o conceito que a palavra encerra. na sua ligação à Educação. E desde logo, o aliciamento nas pistas enunciadas nas primeiras páginas levou-me a prosseguir. E o progresso na leitura fez-se através do que parecia, à primeira, um martelar constante, a demolir, a pôr sempre tudo em causa e a permitir voltar aos mesmos conceitos sem que sejamos mais os mesmos perante esses conceitos. E de tal forma que os poderemos tratar, manipular, sem que fiquemos presos deles, mas sejamos antes os seus operadores, os seus manipuladores, conscientes de que são isso mesmo, conceitos que manipulamos, utilizamos e veiculamos, podendo ter esperança de que como tal sejam apresentados, como tal sejam, recebidos, olhados e experienciados.

É no repetir e desdobrar à exaustão em significados significantes que a autora vai desvendando, esculpindo, traçando os contornos, conceitos do que quer analizar, desmontar, atomizar, para que os significados ganhem contornos mais nítidos ou menos nítidos ainda, mas desprendidos das suas conotações iniciais.

Deste modo, desdobrando infinitamente cada ideia, cada passo em múltiplos passos, a autora vai progredindo num percurso ora circular, ora em espiral e que nos toma, se apodera de nós por vezes e nos transporta entre sentimentos que se contradizem um após outro numa teia envolvente de múltiplos significantes em que desdobra uma intenção, uma intenção-pensamento permanentemente anunciada, sempre desmultiplicada em planos, em vertentes, em si mesma promessa, em si mesma encerrada, como infinitamente pequeno encerrado no infinitamente grande.

Um massacre de palavras, espremendo-as, escalpelizando-as, limpando-as de conotações e significados acessórios, da sua carga histórica e cultural, nelas revelando o conceito puro-outro-estranho-diferença e os seus reflexos nas atitudes na Educação.

E, confesso, após a leitura, a certos momentos apaixonante, a minha atitude perante o conceito de inferno – perante este conceito de inferno - e todos os personagens diabólicos a ele associados, não mais voltará a ser a mesma.

Refere a autora que os textos do livro fizeram parte do Seminário Avançado “Para uma Filosofia do Inferno na Educação” desenvolvido em 2001/1 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Não resisto a resolver esta recensão optando pela transcrição pura de expressões e enunciados, sintetizando outras quando possível, retirando frases, embora com prejuízo, do contexto natural em que a autora as encadeou, deixando por isso aberto o caminho para que o leitor explore ele mesmo o que desta forma fica prometido.

Uma Apresentação a 4 tempos: “Um livro infernal”

O livro começa por se definir como criador duma “máquina abstracta infernal” (11) “rouba conceitos e atraiçoa-os” (11)– com a qual vai problematizar o sujeito Educação na sua identidade que não é mais do que uma ficção, “ficção prática que faz do sujeito unitário da Educação um ser idêntico ao pensamento de si mesmo”(12). E propõe-se possibilitar às práticas educativas “substancializar, represar, fixar as relações e conexões entre todas as multiplicidades e individualidades actuantes na Pedagogia, no Currículo, na Escola”(12)

Por aqui já tem o leitor uma pequena pista. Prossigamos pois na descoberta, numa passada que não mais nos levará a olhar doutra maneira o “Inferno ” e que, também, não mais permitirá a facilidade no olhar sobre a mulher, a mulher no mundo da Educação, a mulher Ser complexo, pleno, livre, Ser-Outro na relação complexa da vida com nós próprios.

Continuemos com a autora ao enunciar os propósitos do livro: “Ao realizar uma experimentação com o Inferno, o livro busca formular novas indagações, valorar outros valores, conceber novos afectos, adensar diferentes emoções”(12) E mais adiante: “Sem ser uma concessão ao exotismo, ao esoterismo ou à escatologia, o livro reivindica a sua enfermidade ficcional, a sua anomalia criativa, o seu estado valetudinário”(13).

E num ritmo em que cada frase parece gerada por conceitos anunciados na frase anterior, vem-nos a promessa de “soltura de velhos conceitos” (13) de “desdobramento da linguagem sobre si mesma”(13) e de convocar personagens “convidados a irromper em cena - na festa instaurada pela invenção conceptual - e promover um total estranhamento do pensamento educacional e sua dissolução no caos da novidade” (13).

A autora prossegue: “Ao serem evocados (os personagens infernais) simplesmente fazem-se presentes, em sua realidade surpresa, agenciamento de espantos, línguas de fogo, tumultos, saltos, voos, travessias” (13).. E conclui, referindo-se aos alunos e alunas do mestrado que dirigiu em 2001: “Filosofar o Inferno, cria um material de pensamento capaz de captar a miríade de forças do cosmo: única resistência ao intolerável actual da Educação” (14).

Feita esta iniciação, vejamos mais em detalhe as secções temáticas em que o livro se desdobra, tocando-as aqui e ali para revelar ao leitor momentos, elos do encadeado de propósitos e revelações, usando a massa de palavras de que estão feitos, melhor do que procurar as minhas que insuficientes seriam para tal propósito:

A primeira Secção:

“Entradas e saídas para inventar um problema: linhas do Diabo, geografia do Inferno”, desdobra-se em vários enunciados:

“É fácil”: É fácil dizer que o Inferno “é tão velho quanto o mundo” (15)., que o Inferno e o Diabo “pertencem a toda a humanidade”(15). Que “são usados como forma matricial de qualquer ideologia e movimento de fetichização” (15). “Que são completamente indestrutíveis” (15). e se refazem como mil cabeças da Hidra “em torno das experiências do Mal, da Falta Moral, do Castigo e do Sofrimento” (15).

“O diabólico aparta”: Diabo, enquanto tradução grega do satanás hebraico, “significa opositor, adversário, inimigo” (17) Etimológicamente, segundo a autora, “o dia-bólico separa, divide, aparta” e “contrapõe-se ao sim-bólico que sintetiza, reúne, unifica” (17)

“Não morre”: “Porque as salas de cinema lotam para ver O exorcista, King-Kong, Alien, o oitavo passageiro, O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, O iluminado, O Bebê de Rosemary, A Profecia, Psicose, A Bruxa de Blair, Carrie, A Estranha, O décimo oitavo anjo, Entrevista com o vampiro, A hora do pesadelo, O sexto sentido, Filha da Luz, Dominação?” (18)

“Os diabólicos são fantasmas do humano, efeitos do seu pesadelo antropomórfico?” Ou “são a incomensurabilidade do humano, sua exterioridade radical?” (18)

“Monstro”: “O Diabo é um monstro?” “Incorpora o Fora, o Além, o Mal, mas origina-se no Dentro, no Mesmo, no Eu?” (20)

“Um dos nossos”: “O Diabo não integra o além-mundo. É vivente deste mundo, imanente ao nosso mundo” (20). “É reservatório inesgotável de criação: A inferesfera” (20)

“Desde o pensamento da finitude, o mundo não foi mais ordenado por Deus e o humano quedou exilado dos outros seres vivos. Humano sem divindade, desamparado e só, ambíguo e limitado” (21).

“Mal Radical”: “O que se passa hoje com o Diabo, usando esse velho nome? O que é que acontece ou volta ao nosso mundo com essa denominação? O Diabo é figura exemplar do Mal Radical que ainda marca o nosso tempo? O que aconteceu com a nossa cultura cristã, judaico-cristã?” (25) “Será que o Mal Radical pode ser reduzido ao que a doxa denomina como fundamentalismo, integrismo, fanatismo?”(25)

“Inferno – khôra”: “O Inferno da Educação é o que vem de 3.500 a. C. , dos acádios e sumérios, babilônios e assírios, hebreus antes do exílio e gregos arcaicos, povos germânicoa e altaicos, tibetanos e polinésios, manchús e tártaros, mongóis e turcos, xamânicos e yacutas, tunguros e yuracks da Sibéria central, da África Negra e pré-colombianos da América?” “Ou seria chóra?” (26)

A segunda Secção: “Experiência perigosa que assusta os funcionários”

“A tarefa específica da formação filosófica do Inferno” – “pode-se falar de uma filosofia do Inferno na Educação?” – “é ser capaz de pensar o impensável, o impossível, o não-pensado do pensamento educacional. Embaralhar a sintaxe e organizar o pensamento numa lógica às avessas, constituindo-se como pensamento-outro da Educação” (29-31)

Esse pensamento “elabora as normas de sua própria criação conceitual, só retendo as conjugações e conexões que dão consistência ao seu pensamento. Uma consistência que se instaura sobre um pensamento sem imagem, sem modelo, forma ou função, sobre um planômeno, chamado pela filosofia do inferno de Inferesfera.”(31)

“Pensar a Educação por conceitos infernais, traçar a inferesfera, ter um estilo infernal da diferença: essas são as três marcas de um pensamento que se metamorfoseia em diferentes níveis de argumentação e funciona como máquina de guerra para combater os aparelhos que capturam o pensar educacional”.(32)

O pensamento do Inferno “pode ser definido também como uma teoria das multiplicidades. Teoria que implica elementos actuais e, mais importante, elementos virtuais, já que todo o actual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais”(33).

“Pensar a educação por meio do inferno é um construccionismo filosófico que não se ocupa do Conhecimento, não diz respeito à Epistemologia ou à Teoria do Conhecimento e só quer saber do que significa pensar infernalmente a Educação”. “Esse movimento é tributário de Nietzsche pois leva os filósofos do inferno a não se contentarem mais com os conceitos que lhes são dados, mas começam a fabricá-los, criá-los, afirmá-los e mostrar aos outros que podem ser usados”.(34)

A terceira Secção: “Amigo do Estranho? Não, estranho em potência”

“Não há conceitos da filosofia do inferno em si mesmos. Eles são sempre o resultado de trabalho do pensamento sobre matérias de inquietante estranheza, experiências paradoxais, intensidades-limites”.(37)

“Sem adequação ao real, nem referência ao que é, têm a ver com produção do não-senso que aniquila tanto o bom senso quanto o senso comum, impossibilita a identidade, destrói aparências, refere-se à diferença por meio da própria diferença”.(38)

“Estranhando, tornando estranho o mundo da Educação, qualquer conceito da filosofia do inferno tem uma forma passada, presente e por vir”(39) “É composto por elementos vindos de outros territórios que respondem a outros problemas e supõem outras possibilidades de orientação do pensamento” (39)

“Inferno, definido por seu poder de criação-acção e de participação em co-criações, quando se conecta aos conceitos de estrangeiro e sinistro, misterioso e grotesco, sobrenatural e fantástico, baixo e infame, bárbaro e selvagem, louco e libertino, demónio e bruxa, fantasma e vampiro, unheimlich. Conceito incorporal que se encarna e efectua seja em corpos disformes seja em sublimes. Conceito inumano que é uma hecceidade diabólica”(40).

“É a própria imanência pura do conceito que lhe fornece essa capacidade de voar sobre o vivido e sobre si, em si, sobre o plano infernal”(41).

“Um filósofo do inferno é mais do que um amigo do inferno-estranho, ele é o próprio Estranho em potência. Não pára de remanejar seus conceitos e de experimentá-los, de dessemelhá-los, devi-los infernalmente, variá-los perpetuamente, na tarefa de estranhar o mundo da Educação”(41).

“Com Leibniz, o Estranho acredita, frequentemente, estar entrando num porto seguro, mas é jogado, outra e outra vez, em pleno mar. Com Nietzsche, corrige ele mesmo suas idéias, para constituir novas, às vezes esquecendo todas as conclusões às quais chegara anteriormente” (41).

A quarta secção: “Mil-folhas do inferno movente”

“Para realizar o pensamento do Inferno na Educação, é preciso um encontro entre o meio educacional estranhado e o plano infernal de imanência”(43).

“A Educação arranca a história de si mesma e desvia-se do culto das suas origens, para afirmar a potência desse meio e descobrir o seu devir-infernal, sem o qual muito pouco fará na descontinuidade da sua história” ”(43).

“O mundo do pensamento educacional reduzido a cacos vibra na periferia maquínica do diabólico e do tormento infernal. E a inferesfera, horizonte, diagrama, vai-se implantando como plano quimérico e espectral, indivisível e impartilhável, lúdico e alegre, leve e pródigo em riqueza e invenção” (43).

“Inferesfera: reservatório sinistro, mesa do contra-senso, bandeja do sem-sentido, taça de veneno da filosofia do inferno” (44). “Percebida ao mesmo tempo em que faz perceber o imperceptível, a inferesfera vai funcionando como criadora do pensamento do inferno” (44).. “A inferesfera não é metáfora nem metonímia, pois não dispõe de nenhuma dimensão suplementar ao que se passa sobre ela” (45).

“O meio intuitivo do inferno é um corte que capta uma fatia do caos. Selecciona e fixa, determina e contém o caos, embora permaneça livre em todas as outras direcções, em função da sua pluralidade” (45)

“Porque a inferesfera é, ao mesmo tempo, o que deve ser pensado e o que não pode ser pensado no pensamento educacional. É o impensado, impensável, não-pensado da Educação” (46)

A quinta secção: “Os infernais”

Os personagens infernais: “Eles é que forçam uma variação do pensamento da Educação ao infinito, com as suas dobras enunciativas” (49).

“Os infernais não têm nada a ver com as figuras do inferno pagão, cristão ou moral”(50) que, “unindo o direito e a moral, a religião das almas e o governo dos corpos, acabam sempre albergando-se no nobre reino dos humanos. Já os infernais, assombrados apenas por si mesmos, tornam-se sempre mais estranhos a esse reino. Por não se originarem de nenhuma crença em deus ou no diabo, nem de qualquer postura mística do espírito, mas da autoposição de si, são inventados por uma fantasia do pensamento, livre de objectivos escatológicos.”(50)

“Os personagens infernais “têm traços próprios que não podem ser listados, porque nascem sempre e misturam-se constantemente para compor um personagem. De qualquer modo, há traços pathiques: o Infantil-Natural que vive no educador e o força a pensar a naturalidade do infantil. Emílio, o Bom Selvagem, é um de seus nomes que pode mudar para Vitor, o Menino-Lobo, adquirindo o sentido de Mau Selvagem. E os dois, por vezes, se conjugam, produzindo um estado educativo a ser atingido por cada infantil, mesmo que lhe custe. Há o Bem-Educado, aquele personagem que quer ser um modelo, que vive no filósofo do inferno, forçando-o a agir, e que se transforma no Mal-Educado, personagem que leva o pensador a revoltar-se para pensar a diferença pura”(51).

“Os infernais roubam o devir-demoníaco do que é conhecido na Educação”(55). “Como penetram no inferno da Educação? Impossível saber, entretanto, estão sempre lá. E, a cada noite e dia, multiplicam-se infinitamente. Mesmo não nomeados, eles eles são sempre aludidos no Selvagem, Idólatra, Muçulmano, Judeu, Rural, Litorâneo, Capitalista, Adolescente, Neoliberal, Negra, Político, Sem-Terra, Imigrante, Deficiente. Podem ser reconstituídos no perjúrio, mentira, assassinato, violência, opressão, trânsito, mutilação, terrorismo, consumismo, cinema, televisão, família, trabalho, publicidade, pobreza, mortes”(55).

“Vivendo aí – na inferesfera - transportes de afectos, fazem as pequenas coisas do mundo quotidiano mostrarem-se malignas, possuídas por demónios, ganharem animosidade, vontade própria, impulsos destrutivos e poder lançar-se sobre os humanos a todo o momento, especialmente onde os afectam mais sensivelmente”(55).

“Não são anti-cristos, mas à força de fazer irromper poderes desumanos no pensar, tornam-se anti-humanos. Eles são os que-não-deviam-existir, os que-não-podem-ser-nomeados, os que-é-preciso-negar, já que, ao desordenar e cavar abismos no pensamento, fazem da Educação um pandemónio e de seu mundo uma commedia dell’arte: o aluno se transforma no basilisco que cega, as professoras em figuras de açúcar, a escola em pedra de gelo”(55).

“Participando, a um só tempo, de farsas e tragédias, os infernais fazem teatro dentro do teatro, jogam o jogo absurdo de papéis, convertem o mundo da aparência em realidade e vice-versa”(58).

“Os infernais podem receber vários nomes próprios: Lilith, O Marginal, Satã, A Besta, Yama, Foucault, Demo, A Mulher, Aquele-que-nunca-ri, Leviatã, O Grotesco, Príncipe das Trevas, O Estrangeiro, Lúcifer, O Selvagem, Belzebu, Comte, Velho Cavaleiro, Mananan, O Violento, Freud, Vampiro, Abigor, O Libertino, Jeová Negro, Erlik Khan, O Infame, Semihazah, O Baixo, Sombra de Deus, Tremendo, Belial, Excomungado, Azazel, O Infantil, Mictlantecuhthi, Maldito, Piaget, Mastema, O Louco, Cornudo, Bruxa, Angra Mainyu, Tremendo, Belfegor, O Monstro, Mulambento, Cão, O Bárbaro, Asmodeus, O Doente, Fedegoso, Coisa-Ruim, El-Niño, La Niña, O Irracional, O Diferente, O Eu”(58).

A 6.ª Secção: “O diabo do currículo”

“O diabo do currículo e seus ancestrais integram os mitos de todo o mundo. Eles são anteriores aos deuses criados para deter o dilúvio e os fogos caídos do céu. São prévios aos governantes celestes que controlam os impulsos destrutivos dos gigantes e seres disformes”(62).

“São anteriores às repúblicas populares e às monarquias governadas por leis humanas. Eles são mais antigos do que Hércules, Platão e Cristo. E muito, muito mais antigos do que Descartes, Kant e Marx. Eles vêm do tempo do tabu. É desse tempo que trazem de herança para o currículo o carácter impuro de indivíduos, grupos ou coisas; as proibições e exclusões que resultam desse carácter; e a impureza resultante da violação das proibições e da não exclusão.

Ainda hoje, em plena idade do ricorso curricular – período confuso, fim de um ciclo e princípio de outro – temos de lidar com seres, objectos, lugares, acções e tabus, isto é, demoníacos”(62).

“Quando irrompem, no mundo do currículo, os mitos da cristandade e a crença no além-mundo; as idéias de espíritos da luz e das trevas, do bem e do mal; os decretos e promessas de salvação educativa; a força do poder pastoral e os dispositivos escolares, a idéia do diabo associa-se a eles” ”(63).

A 7.ª Secção: “Os bons(?) os maus (?): genealogia da moral da Pedagogia”

“Na Pedagogia , há um personagem infernal, diabólico, demoníaco que diz: - Eu sou bom, portanto você é mau..Quem é que pronuncia essa fórmula, o que quer com ela e para quem é dita? O Infantil é quem a diz ao Adulto, personagem celestial, eleito, divino da Pedagogia”(67).

“O Infantil afirma a sua bondade institiva, sem se comparar ao Adulto, sem comparar suas acções, emoções e afectos a quaisquer valores superiores e transcendente”(67).

“Já o Adulto da Pedagogia começa pela negação: - você, Infantil, é mau, portanto, eu sou bom”(69)

“Vê-se como a genealogia do Bem e do Mal da Pedagogia não concerne ao bom e ao mau, mas, ao contrário, à troca da distinção, à subversão da determinação do Bem e do Mal. Esses são valores morais novos, valorados como valores pedagógicos supremos, é certo. Mas, não podemos esquecer que são criados invertendo-se o bom e o mau das forças da ética infantil. São criados não pela acção do Infantil, mas no impedimento de sua acção infantil promovida pelo Adulto, que inicia a moral pedagógica começando por negar a infantilidade; desenvolvendo-se pelo enfraquecimento da infância; e concluindo pelo desaparecimento radical do infantil”(72).

8.ª Secção: “Nós, mulheres-professoras, ainda queremos ser deusas e bruxas?”

Esta secção, ao longo de 37 frases numeradas sob o tema “Deusas e bruxas”, postula 37 enunciados sobre a mulher, “qual Terra, de cuja carne rasgada por grutas e fendas nasce toda a vida do Universo”(75), fazendo incursões por milhares de anos da figura e papel da mulher nas civilizações e cultura humanas:

A mulher, “extremamente poderosa, invade o homem em cada parte do seu ser”(75) sugando-lhe, pela sedução, o seu poder viril.

A analogia recorrente terra e mulher, “por meio dos ventres que geram a vida”, “ventre nefasto que nutre, mas que também leva ao reino dos mortos, sob o solo, ou nas profundezas das águas”, é “Senhora da Vida que semeia e vivifica, fecunda e fertiliza”(76)

“No homem, o corpo refecte a alma, na mulher, não, já que o seu corpo obstaculiza o exercício da razão e da virtude”. “O homem é a imagem de Deus, a mulher é a imagem do Diabo. Só há um sexo: o masculino. A mulher é inferior, imperfeita, em falta, um macho deficiente e mutilado. Por ceder ao Tentador, deve permanecer sob tutela”(76)

“A fertilidade e a fecundidade supremas da mulher são incorporadas ao simbolismo da Grande Deusa Mãe”. “As Vénus esteatopígias de pedra, argila ou osso, sacralizam a maternidade, com seus longos quadris, seios caídos e ventre protuberante”(77).

“Crédula, impressionável no ser e na acção. Apresenta deficiência natural de inteligência”(77)

“Mulher e Lua: dois corpos com ciclos fundamentais que marcam o ritmo das marés, chuvas, germinação, fecundação, menstruação, gravidez. Como a mulher, a Lua é cálice, ventre, receptáculo, vaso, luminosidade que ofusca nas trevas”(78)

“Força misteriosa que influencia maleficamente tudo o que toca”. “Corruptora e transgressora de toda a lei humana, moral e divina”, “atrai pela mentira e arrasta os homens ao abismo da sensualidade“. “Mulher de vida fácil”, “adúltera, delinquente, luxuriosa, violadora, libidinosa, incestuosa”. “É ela quem introduz no mundo o pecado, a desgraça, a morte. Pandora grega, Eva cristã, Lilith judaica: cometem as faltas originais e trazem os males à humanidade”(78).

“Mulher-Serpente”, “possui as duas valências e os dois sexos quando morde a própria cauda”.”Atena”, simbolo da Pitonisa” (79)

“Como a Lua, a mulher é incapaz de brilho próprio, passiva e frígida. Como a Serpente, é venenosa, sombria e enganadora”(79)

“Guerreira e caçadora, nunca frágil ou delicada, jamais escrava, livre sexualmente, superior a todos os deuses, identificada à soberania universal, muitas em uma, uma em muitas”(80).

“A gruta sexual da mulher é fossa viscosa do inferno”(81).

“O culto da Terra-Mãe transmuda-se no da Deusa Mãe” (81)

“Juíza da sexualidade do homem, inesgotável, insaciável, comparável a um fogo que é preciso alimentar”, “ela impede o homem de ser ele mesmo, de encontrar o caminho da salvação”(81).

“Envolta em luzes e trevas, rainha do Céu e do Inferno, doadora do bem e do mal, condutora na vida e na morte, virgem angelical da maternidade e prostituta do desejo e da volúpia no sexo, a mulher possui uma dualidade conectada à magia do seu sangue”, “sangue da vida, da menstruação, defloração e parto”(81).

“Mais perigosa que uma armadilha, quando bota as mãos numa criatura, enfeitiça-a com a ajuda do Diabo: femme fatale”. “É cortezã, meretriz, rameira, prostituta: Olympia e Nana, de Manet, filles publiques, de Rops, Goya, Degas, Toulouse-Lautrec, femmes damnées, de Baudelaire”(81)

“A Deusa Mãe do paganismo reina sem companheiro durante milénios. Aos poucos, é associada a um jovem deus que assume o papel de Filho Amante, assujeitado a ela. No plano divino, a Magna Mater Deorum engendra esse Filho que também é seu amante”(82).

“Santuário do Estranho”. “Tem poderes de profetizar, curar ou prejudicar, por meio de beberagens, unguentos, poções, olho gordo, mau-olhado. Sabe a receita dos filtros de amor, tira sortes, frequenta os cemitérios, viola cadáveres, aterroriza animais e pessoas, pratica sacrifícios humanos”(82)

“Personagem de um casamento sagrado, a união entre Deusa Mãe e o Filho Amante, no plano temporal, é vivida por reis, chefes e heróis”(83)

“Monstro, besta fêmea. Medéia, a mãe ogra, seduz Jasão, cozinha drogas para Esão e devora os filhos. Kali, deusa indú, Mãe do Mundo, criadora e bela, sedenta de sangue, exige o sacrifício de milhares de animais por ano. Safo, da ilha de Lesbos, andógina, sedutora de ninfas, pervertida”. “Amazonas”, “Erínias”, “Margot, a Furiosa, de Brueghel”, “a Esfinge, de Éfeso”, “Medusa”, “Sirena, de Ovídio”, “Harpia”, “Vampira”, “Hera, que mata o filho”, “Lâmia”, “Circe”, “as três Parcas”, Mênades, as possuídas”(83)

“Princípio Feminino, Fonte da Vida, só a Deusa Mãe é Prostituta Celeste, Puta Divina. Nos templos, a jovem púbere lhe consagra a virgindade” (84).

“Noiva do Diabo”, “Mulher-bruxa”, “realiza o pacto diabólico pelo qual se torna devota cega e serva obediente do Demónio. Fala com ele numa linguagem sem palavras”. “Vai aos sabbaths nocturnos, sacrílegos e blasfematórios, montada em vassouras, tridentes ou bodes negros. Participa activamente de liturgias demoníacas, orgias, incestos, canibalismos, infanticídios, sodomias, lesbianismo, bestialidades”. “Tem imaginação devassa. É naturalmente insana”(84)

“Existe uma ambivalência fundamental diante daquela que dá a vida e anuncia a morte: admiração e inveja, respeito e temor, fascínio e medo, amor e ódio”(85).

“Zeus engole a amante Métis e o feto, fazendo Atena nascer de sua cabeça”. “Jeová cria Lilith, a primeira mulher para Adão, cheia de saliva e sangue, da terra impura, suja de fezes e imundícies”. “O Deus Único cria Eva, a segunda mulher, do osso-pó de Adão, como A Que Parirá, com todas as dores do mundo: apêndice do homem, para servi-lo e obedecê-lo”(85).

“Pitagóricos e platónicos privilegiam o Uno, o Princípio Primeiro” e “inferiorizam a multiplicidade associando-a a tudo que é instável”. “Múltipla é a Deusa Mãe, ocultada por Deus Pai Todo-Poderoso que, por sua vez é afastado pelo Filho, que reina”(86).

“Chamariz, cúmplice e aliada de Satã”, “provoca êxtases, transes, possessões”. “Incorrigível, infiel e vaidosa, viciosa e coquete, enganadora e maliciosa”(86)

“A Deusa é fonte e origem de tudo: Tyché”, “Cibele e Átis”, “Juno”, “Minerva”, “Libera”, “Ceres”, “Deméter”, “Vesta”(86).

“Sentinela do Inferno”. “Sua língua tagarela e palavras melífluas causam grandes males”. “Derruba reinos: Tróia, por Helena; o dos judeus, por Jezebel e sua filha Atália, rainha de Judá; o romano, por Cleópatra, a Rainha do Egipto”(87).

“Mulher-Sol”, “Mulher-Graal”, “Mulher-Esmeralda”, “Deusa da Irlanda”, “Mulher-Gata”, “Nut, Ísis”, “Mulher-Dragão”, “Mulher-Planta”(87).

“Flecha de Lúcifer. Arma do Demónio”. “Praticante de Necromancia”, “enfeitiça a mente dos homens, leva-os à loucura, ao ódio insano e à lascívia desregrada”(88)

“Mulher-Fada”,“mortal ou imortal, transita pelo mundo terrestre e pelo reino encantado do qual provém. Avatar do ser sobrenatural, seu poder é superior e divino”. “Madrinha-mãe ou madrinha-amante. Do mundo arturiano: Morgana, satânica, maléfica, a Dama do Lago-Viviane, maternal, fiel servidora do Senhor”(88)

“Trono de Satã”, “filha mais velha de Satã, ignóbil pérfida, vil”, “hábil na ilusão e burla dos sentidos, torna as mulheres incapazes de conceber, ou as leva a abortar”, “cozinha os recém nascidos, de suas carnes e ossos faz pomadas e unguentos”, “assassina os filhos, oferta crianças não-baptizadas a Satã. Por meio de encantamentos, poções ou ervas”, impede o homem “de copular, torna-o impotente, temporária ou permanentemente”(89).

“Dama cortês: do lirismo medieval trovadoresco, o culto ao corpo da mulher como propagador do bem e do belo.Amar a castidade de seu corpo e a pureza de sua alma é a principal virtude do cavaleiro”(89).

“M, de mulher Má (90)..

“Mulher, a primeira e a última”, “a que é honrada e a de quem se zomba”, “a prostituta e a santa”, “a esposa e a virgem”, “a noiva e o noivo”, “o conhecimento e a ignorância”, “a tola e a sábia”, “a quem chamam Vida e vós chamastes Morte”(90)

A autora, sob a interrogação “Elas?”, conclui esta Secção: “Ser deusas e bruxas é algo que cabe a nós, mulheres-professoras, decidir? Nós temos autonomia para determinar esses modos de ser? Mas quem somos nós, para escolher, diante de milhões e milhões de anos, discursos, textos, práticas que inscreveram tais modos de ser em nossos corpos e almas, mesmo antes de nascer como mulheres e trabalhar como professoras?”. “O que é uma mulher-professora, hoje, senão a carne viva de tudo o que se disse dela e também o seu distanciamento crítico disso tudo, que lhe permite reler e reescrever todas essas palavras, desfazer e revirar e refazer todos esses sentidos?”(90)

“Não nos tornamos nem deusas nem bruxas, como esses corpos programados há tanto tempo, mas também todas elas” (91) é a resposta da autora e que faz profissão de fé.

“ Convocamos e repelimos tudo do mundo visível e do mundo invisível para funcionar, inventar outras megeras criadoras e diferentes soberanas da perdição de nós mesmas. Lutamos para descorporificar todos esses espíritos”(92).

“Dizemos não às histórias impostas de mulheres, professoras, deusas, bruxas, e mergulhamos em um mundo entre-mundos, para nos encontrar com a nossa impessoalidade”(93).

9.ª e última Secção: “Rasgar o firmamento, mergulhar no caos, retornar da morte”

“Qualquer variação conceptual desafia e lamina as opiniões preexistentes, para encontrar formas de criação do novo na Educação. Formas que, nesta filosofia do inferno, respiraram uma atmosfera de estranheza, rasgaram o desconhecido do firmamento, mergulharam no caos diabólico e daí trouxeram variações sobre a inferesfera”(95)

“Qualquer pensamento só é avaliado pelos movimentos que traça, fluxos que cria, multiplicidades complexas que infinitiza. Só pode ser condenado aquele pensamento que não experimenta, não prolonga, não desterritorializa, não foge, não se relaciona com problemas de fora, não abala a confiança na arbitrariedade da língua, nem vive a gagueira e o bilinguismo dentro da própria línguagem”(96)

“A filosofia do inferno busca dar o que pensar ao pensamento da Educação”, “liberar riachos e canais de conceitos, onde pululam mais seres maravilhosos do que no fundo dos oceanos”(96)

“Os pesquisadores do inferno na Educação”, têm por destino transformar-se nos seus infernais. Assim, poderão “retornar do mundo das ideias, opiniões, coisas e sujeitos mortos” como vencedores. Vencedores que indicam “não algo nem alguém que ultrapassa suas possibilidades” , mas agentes “de enunciação da filosofia do inferno”(96)

“A questão não será o que um infernal desses pode ou não fazer no pensamento da Educação, mas a maneira pela qual é perfeitamente positivo e produtivo como pesquisador do inferno, mesmo no que não sabe ou não pode pensar”(96).

Sobre a autora do livro

Sandra Mara Corazza es Licenciada em Filosofia, especialista em Pesquisa Educacional e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É Professora do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRGS, sendo autora de vários artigos em revistas especializadas e co-autora em diversos livros que vêm sendo publicados desde 1994.

Sobre o autor da recensão

José Manuel Freire da SilvaArquitecto, na Educação, em Lisboa, por via dos edifícios escolares - em tempos também professor do ensino básico e secundário - menos familiarizado com a filosofia e as ciências da educação, mais um leitor atento em tanto quanto constitui assunto de reflexão sobre os ambientes construídos onde têm lugar os actos da educação, aceitei fazer uma recensão de livros sobre a minha área profissional. Logo me calhou este, de índole filosófica e centrado na problemática das Ciências da Educação num contexto brasileiro, meio a que me sinto estranho - estranho de país e da problemática - que não de Pátria que essa, é a nossa língua comum, rememorando Pessoa.

Poise porque não? Aceitei o desafio.

 


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