Fraga, Alex Branco. (2000). Corpo, identidade e bom-mocismo:
cotidiano de uma adolescência bem-comportada. Belo Horizonte:
Autêntica.
168 pp.
Preço R$ 21,00. ISBN:
85-86583-69-3.
(http://www.autenticaeditora.com.br/)
Resenhado por Carmen
Lúcia Soares
Professora Doutora
da Faculdade de Educação da
UNICAMP.
Integrante do
Laboratório de Estudos Audiovisuais –
OLHO.
23 de agosto de 2001
O que
mais
impressiona neste livro de Alex Branco Fraga é sua
capacidade de interligar temáticas complexas,
tratá-las a partir de uma fina e devastadora
análise e, assim, trazer à tona a
somatória
de problemas novos e antigos colocados em torno do corpo, da
identidade e da constituição do que ele chama
de
“bom-mocismo” na adolescência.
Quais
são os fios que percorrem a narrativa do autor?
São
os modos como o corpo é educado, sujeitado, submetido
a
uma determinada ordem discursiva do
“bem”.
Resultado
da pesquisa de mestrado desenvolvida pelo autor entre os
anos de
1997-1998 junto ao Programa de Pós
Graduação
em Educação da Faculdade de
Educação
da UFRGS, este livro não contém a suposta
frieza
documental ou, ainda, a dureza de uma teoria que conforma o
conteúdo ou que irá provar o sintoma enunciado
em
seu percurso inicial.
Neste
livro
revela-se a existência da possibilidade da pesquisa
encarnada, das relações inteiras entre o
pesquisador e o que ele pesquisa, da impossibilidade da
isenção. Revela, ainda, que não foram
as
técnicas de pesquisa que ditaram as suas perguntas e,
sim,
a polissemia e a densidade da temática, a curiosidade
intelectual comprometida. E é assim que, para
elaborar seu
percurso de análise, Alex centra-se no individual, no
particular, no detalhe e não em desgastadas
estruturas
padronizadas. Parece que segue aquilo que o historiador da
arte
E.H. Gombrich fala acerca das ciências humanas: que
elas
não “precisam de imitar as ciências
exatas
para continuarem a ser respeitáveis”, pois o
historiador cultural, objeto de sua análise
“quer
servir a cultura e não alimentar a indústria
acadêmica”. (Para uma História
Cultural,pp. 98-99)
Este
livro,
portanto, é singular e é em sua singularidade
e em
sua insistência no detalhe que percorre os contornos
da
história, mergulha num presente saturado de agoras,
conforme diria Benjamin, e evidencia a
constituição
dos comportamentos. Do detalhe, elabora possíveis,
para
compreender discursos e práticas sobre uma
“adolescência bem-comportada”.
Com
uma
apresentação impecável de Guacira Lopes
Louro, orientadora da pesquisa de mestrado que deu origem ao
livro, Alex brinda o leitor com um texto elegante e denso,
iniciando sua narrativa pelo lugar de onde partiram suas
análises: as aulas de Educação
Física. Fala da cidade que guarda os corpos bem
comportados. Traz, para o leitor, os relevos e os
horizontes, os
contornos da arquitetura, as sombras das esquinas, os
traçados das ruas. A estas pedras e madeiras
carregadas de
histórias, agrega narrativas que se juntam para dizer
mais
da cidade. Delas escorrem compreensões acerca da
vida, dos
comportamentos, das atitudes e, assim, enunciam um ethos que
se
quer urbano, modos de ser possíveis no desenho de
Cachoeirinha, encravada na região metropolitana de
Porto
Alegre/RS.
Esta
pequena cidade guarda sua semelhança com tantas
outras
que, como ela, têm sua igreja para onde convergem as
ruas.
Tem a escola, algumas casas comerciais..., um clube, algum
centro comunitário, um teatro. O que fazem os
adolescentes
e jovens desta pequena cidade? Jogam futebol? Vão aos
bailes particulares? Às festas da igreja? Estas
perguntas
aparentemente tão banais permitem respostas
múltiplas, problematizações amplas. E
Alex
não busca as respostas imediatas, banais, mas, tendo
como
uma de suas referências teóricas M. Foucault,
vai
buscar o difícil, o complexo naquilo que se apresenta
demasiadamente banal. A adolescência e a juventude que
quer
apreender não se apresentam a ele como naturais, mas
como
históricas. Portanto, o presente que se mostra aos
seus
olhos, corpos auto-controlados de uma adolescência bem
comportada, remete-o a outras épocas, a outras
retóricas corporais, como diria Foucault. Assim, Alex
vai
aproximando-se de adolescentes e jovens comuns que
freqüentam a 8a série de uma escola
pública da cidade de Cachoeirinha. De uma
seqüência descontínua de acontecimentos
vividos
na escola pesquisada, no convívio com professores(as)
e
alunos(as), procura mostrar o esforço de
sujeição de meninos e meninas ao que é
considerado o “lado bom” e, assim, evidencia
como os
corpos são conformados de um modo profundo e
desigual,
como são capturados pela rede de discursos e
práticas que elabora cotidianamente o
“bom-mocismo”.
Invertendo
discursos, o autor não fala das marcas dos corpos
marginais que evidenciam em seu exterior, em sua
aparência
sua anormalidade. Não fala de indivíduos a
serem
corrigidos, daqueles cujas técnicas, procedimentos
educacionais e investimentos da família, da igreja,
da
escola, fracassaram. Não fala das marcas universais
das
anormalidades. Pelo contrário, todo seu
esforço
converge para revelar o corpo marcado pelo santuário
da
normalidade, o corpo que é resultado “bem
sucedido” da união dessas diferentes
instituições educativas. É do corpo do
bom
moço e da boa moça que nos fala Alex. É
das
muitas e múltiplas marcas ali encontradas que revela
o
significado do espelho. Mirar-se a si mesmo, ao igual,
àquele que não assombra, que não
assusta,
que é aceito como o reflexo do bem.
Desvestindo
peles lisas e bem tratadas, o autor percorre universos
sombrios
que cotidianamente, deliberadamente, devem ser exorcizados
pelos
diferentes processos de polimento da carne engendrados na
história, pelas sutilezas da captura dos corpos em
distintas ordens discursivas. Assim, traduz com grande
acuidade
uma leitura do corpo que escapa à lógica
normativa
na qual vivemos: “é que o sujeito bom-
moço
também está marcado fisicamente”
(p.113).
Escola,
família, igreja se articulam em linhas de
força e
operam as ligações entre sujeito e discurso
por
meio de procedimentos “cirúrgicos”. Algo
que
vai aparando as arestas, lapidando as saliências,
atravessando as mais diferentes camadas do corpo até
que
se instale nele; até que pareça vir
naturalmente de
dentro dele; até que, enfim, passe a ser
irremediavelmente
o próprio corpo. Assim o sujeito bom-moço vai
se
tornando um estandarte da polidez no interior de um longo e
refinado processo de acabamento, que vai trabalhando o corpo
para
que ele possa ser visto sem aspereza, limpo e sem pregas.
Trata-se de uma identificação que provoca
paulatinamente rejeição àquela
violência demonizada, mas de uma forma não
menos
violenta (p. 114).
Este
é um livro sobre a adolescência/juventude, mas
é também um livro sobre o poder de
instituições como igreja, família,
escola;
é também um livro sobre sexualidade,
co-educação, educação
física,
a mais sexista das disciplinas escolares. É um livro
sobre
a constituição de identidades, sobre a
sujeição dos corpos, sobretudo daqueles que
já incorporaram em si os discursos institucionais,
que
já exibem o auto-controle: as boas moças e os
bons
moços.
E
é
de tudo isto que, em sua singularidade, Alex trata de um
modo
tenso e denso e que uma mera resenha é incapaz de
traduzir. Portanto, nada melhor que a leitura do
livro.
Acerca de la
autora
Carmen
Lúcia
Soares
Filiação
Acadêmica: Doutora em
educação pela Unicamp/SP; docente da Faculade
de
Educação da Universidade Estadual de
Campinas/São Paulo (UNICAMP/SP); pesquisadora do
Laboratório de Estudos Audiovisuais –
Olho.
Áreas de interesse:
História do corpo, história da
educação física, história da
arte, educação e imagem.
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