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Freire, Paulo. (2001). Educação e atualidade
brasileira. São Paulo: Instituto Paulo Freire/Cortez.
125 p.
ISBN 85-24908-27-0
Resenhado por Pilar O’Cadiz
Universidade da Califórnia, Irvine
8 de setembro de 2003
Quase meio século se passou desde que Paulo Freire
penetrou seu olhar de extraordinária concisão
crítica e enorme compaixão humana na sombria paisagem
educacional de seu amado Brasil. Ao escrever
Educação e atualidade brasileira, no Brasil de
1950, um analfabetismo monstruoso era a norma, com não menos
do que 50% (Note 1) da população adulta sem saber ler e escrever e,
conseqüentemente, impossibilitados de votar em uma
república que, desde de seu extenso regime colonial e
escravocrata a menos de um século antes (Note 2), afastou a maioria da
participação política ao negar a eles as
oportunidades mais básicas de estudo (Note 3), enquanto fazia do
analfabetismo um pré-requisito para a votação.
Além disso, este sonho de democracia que Freire ousou em
visionar para seus desprivilegiados conterrâneos foi
rapidamente interrompido pela instalação do regime
militar, que permaneceu vigente de 1964, quando Freire foi
forçado a deixar o país, exilado, até ele voltar
ao Brasil 16 anos depois, em 1979, onde ele morreu em 1997.
E ainda, a perspectiva visionária retratada em
Educação e atualidade brasileira ––
uma realidade de mais de 40 anos atrás –– foi o
precursor da formulação de sua poderosa visão
utópica e pedagógica de filósofo. Depois de
escrever este texto, ele foi capaz de colocar em prática
algumas de suas idéias durante o breve período antes de
seu exílio do Brasil, e posteriormente os desenvolveu em
prática e teoria em diversos contextos no exterior. Ele
escreveu este texto num momento de grande promessa
revolucionária e momento reformista na América Latina,
e como tal isso representa os raios de esperança iniciais
que Freire projetou ao longo do horizonte empobrecido de sua
terra natal pernambucana dos anos 50. Ultimamente, o elucidante
utopianismo pedagógico de Freire cruzou a imensa geografia
do Brasil, alcançando as favelas de São Paulo e Rio de
Janeiro do início dos anos 60, além de toda a
América Latina e do mundo. E agora no início do
século 21, ele é reconhecido como um dos pensadores
pedagógicos mais influentes de sua época.
Ao se deparar com a inconstância desse novo milênio,
Educação e atualidade brasileira dirige
gentilmente o leitor a um lugar de otimismo, fortificado pela voz
autêntica de seu autor, o até então jovem bolsista
educacional que, em seu aparentemente modesto manuscrito
–– sua tese de doutorado na Universidade de
Pernambuco –– proclama os elementos centrais do que
estava para se tornar a filosofia pedagógica e projeto
democrático que significaria uma mudança no paradigma
da teoria e prática educacional na região da
América Latina nas décadas que seguiram a sua
composição. É basicamente uma tese sobre a
condição atual da sociedade brasileira e a
exigência urgente por um tipo de educação
diferente daquela ditada pela tradição acadêmica e
relações sociais repressivas, a fim de aproveitar as
forças democráticas em desenvolvimento na época.
Realmente, em uma publicação posterior de Pedagogia
dos oprimidos em 1970, em que as premissas de
Educação e atualidade foram adiantadas mais
tarde, resultariam em uma multidão de iniciativas
pedagógicas do mundo inteiro da inspiração
Freiriana. Falando de um lugar de crença genuína em uma
sociedade futuramente mais humana e democrática, a
confiança de Freire na capacidade humana de amar, aprender
juntos e – na solidariedade – transformar as
realidades opressivas oferece uma suspensão necessária
do senso fatalista que nos invade nos tempos de
circunstâncias esmagadoras do mundo. (Note 4)
Esta publicação póstuma da
dissertação de Freire de 1959 pela Editora Cortez e o
Instituto Paulo Freire (2001), inclui três textos
preliminares como uma forma de apresentação do texto
principal escrito por Freire. O primeiro ––
“Contextualização: Paulo Freire e o Pacto
Populista” oferece uma visão perspicaz única do
contexto histórico e político no qual Freire escreveu
em seu tratado acadêmico. Freire escreveu em um ambiente
intelectual dominado pelas tensões entre as ideologias
populistas e de esquerda, que ainda submergiam na familiaridade
de sua cidade natal, Recife, no nordeste de Pernambuco. De
maneira apropriada, para esta tarefa de
contextualização, os editores alistaram os
esforços de um nordestino contemporâneo, José
Eustáquo Romão. Romão foi rápido em
afirmar a importância de Educação e atualidade
brasileira em entender a origem de alguns dos principais
conceitos que Freire estava por desenvolver em escritos futuros,
em particular seu trabalho de seminário Pedagogia dos
Oprimidos (p. XV). Ele descreve, efetivamente, o clima
intelectual e as tendências políticas da época,
tanto nacional quanto internacionalmente, que convergiu em criar
o contexto social do Brasil do meio do século vinte, que
permitiu a Freire escrever sua dissertação aos 38 anos.
Apropriado ao momento histórico em que foi escrito, o texto
de Freire é caracterizado por uma visão utópica e
crítica dualista, evitando uma postura elitista e
fatalística, e abrangendo uma fé implícita nas
possibilidades de uma transformação educacional,
diálogo crítico e humanístico e a
criação de uma vida mais democrática para seus
companheiros brasileiros.
Ressaltando o valor da contribuição de Romão ao
seu livro, Moacir Gadotti, um colega de trabalho de toda a vida e
amigo pessoal de Freire, escreveu em algum lugar, “O
pensamento de Paulo Freire – sua teoria do conhecimento
– deve ser entendido no contexto em que surgiu o Nordeste
brasileiro – onde, no início da década de 1960,
metade de seus 30 milhões de habitantes vivia na
“cultura do silêncio”, como ele dizia, isto
é, eram analfabetos. Era preciso “dar-lhes a
palavra” para que transitassem para a
participação na construção de um Brasil que
fosse dono de seu próprio destino e que superasse o
colonialismo.”
Romão documenta para o leitor, com competência, os
principais fatores sócio-históricos que influenciariam
necessariamente as perspectivas de Freire durante este
período de sua vida. Um período em que ele compartilhou
como colega de Freire, trabalhando no Serviço Social da
Indústria (Sesi), onde Freire inicialmente vivenciou o poder
de uma mudança educacional culturalmente baseada
“com” e não “para” os trabalhadores
em Recife. Além de fornecer um contexto histórico
geral, Romão dá uma breve visão geral das
raízes intelectuais de Freire, enquanto se refere ao
trabalho de um outro contemporâneo de Freire, Celso de Rui
Biesegel, como uma fonte fundamental para mais
investigações a esse respeito: Política e
educação popular: A teoria e a prática de Paulo
Freire no Brasil (1982). Romão reconhece a
influência do existencialismo europeu na formação
filosófica de Freire, afirmando que “O existencialismo
foi muito importante para a geração dos anos 50 e 60 no
Brasil e, desta forma, acabou por insinuar-se no pensamento
Freiriano dos primeiros escritos” (XIX). O próprio
Freire reivindicou em escritos futuros, que sua perspectiva era
decididamente “dialética e fenomenológica”
(1985). Além disso, Freire estava escrevendo sua tese de
doutorado em um momento em que o clima intelectual na
América Latina estava vivendo um renascimento do Marxismo,
com o crescimento da influência de autores como Althuser e
Gramsci, e o aparecimento de um Marxismo Cristão que, mais
tarde, evoluiria para uma teologia de libertação. A
perspectiva de Freire não escapou do impacto dessas
tendências políticas-ideológicas na região.
Em uma observação menos radical, o trabalho de Joan
Dewey também executou uma função fundamental na
evolução da pedagogia progressiva no Brasil. A
insistência de Dewey foi de particular importância na
ligação entre o aprendizado e a
contextualização na realidade. Para Freire, esta
realidade era a vida cultural da comunidade local, que deveria
ser uma consideração fundamental de qualquer
ação educacional; caracterizando assim, sua abordagem
pedagógica e explicitamente política.
Ao mesmo tempo, como Romão aponta, este foi um
período imbuído com o otimismo desenvolvimentalista da
recuperação econômica da Segunda Guerra Mundial e
substituição da importação na
industrialização no Brasil, epitomada pela
construção da moderna cidade de Brasília durante o
governo de Kubistcheck (1956-1961), subseqüente ao regime
populista de Getúlio Vargas nos anos 40 e início dos
anos 50. Este paradigma desenvolvimentalista teórico
dominante foi desenvolvido mais tarde no Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (ISEB), estabelecido em 1955. De acordo com
Romão, o ISEB – um tipo de reservatório de
pensamento que, na década de sua existência, funcionou
para gerar uma ideologia nacionalista, que iria grifar os
esforços liberais, para avançar a
modernização da vida política, econômica e
cultural do Brasil – tornou-se cada vez mais orientado por
intelectuais de esquerda. A influência desses pensadores
“esquerdistas” do ISEB no desenvolvimento intelectual
de Freire aparece em diversas referências aos argumentos
populistas de suas principais ideologias. Romão introduz,
necessariamente ao leitor, a chave para os intelectuais
brasileiros que fizeram parte do ISEB, que podem não ser
tão conhecidos internacionalmente, como são em
círculos estudantis no Brasil ou na América Latina.
É o caso de Anísio Teixeira (1900-1971), que Freire
cita repetidamente em sua crítica do centralismo,
autoritarismo e elitismo geral da educação brasileira.
Um outro mentor intelectual ao qual Freire faz referência em
sua tese é Álvaro Vieira Pinto. Freire cita Pinto como
aquele que clama pela criação de uma sociedade
brasileira modernizada e mais democrática por uma elite
política e intelectual querendo trabalhar de mãos dadas
com as massas, nunca impondo suas visões e planos, mas
destilando-os da “consciência coletiva” da
população (p. 22).
Romão ainda afirma, que Freire se distingue de seus
predecessores e colegas do ISEB, em seu reconhecimento de que
aquela “intransitividade” e passividade humana
não são, necessariamente, uma condição
absoluta. De fato, como Romão aponta, Freire iria
desenvolver em sua tese a postulação de que os humanos
sempre têm a possibilidade de se mover dentro da
auto-afirmação e a busca de seu autêntico objetivo
ontológico e, portanto, os humanos mantêm,
essencialmente o poder de fazer valer seus direitos, como
sujeitos de sua própria história (xxxi). Ressaltando
suas tendências Mannheimianas, Rosas conclui que Freire
adota a noção de uma agência humana democratizante
que se dirige em direção à justiça
política e econômica e para longe do totalitarismo da
direita e da esquerda (xlii). Apesar dos elementos
“ingênuos” inevitáveis que caracteriza
isto, um dos primeiros textos de Freire, Romão lembra ao
leitor da “lamentável contemporaneidade” das
realidades analisadas por Freire, que metade de um século
depois persiste em um país que continua para todos os
objetivos intensivos “assistencialista, autoritário e
paternalista… nas relações sociais e da
educação “inautêntica” e
“inorgânica” que predomina o sistema nacional
(xxxv).”
Além dos esforços de Romão em contextualizar
historicamente as teses de Freire, esta edição oferece
ao leitor duas “testemunhas” como prólogos ao
antigo texto de 40 anos: um de um colega de Freire na época
e outro de sua filha, Cristina. O primeiro, de Paulo Rosas,
oferece um acompanhamento único que vai além do papel
do comentário intelectual em reconstruir os eventos que
aconteceram ao redor da elaboração de Freire de sua
tese, especificamente em respeito às particularidades da
cultura da academia da qual ele, evidentemente, participou como
um candidato doutoral. Rosas era psicólogo, mudou-se de
Natal (também no nordeste brasileiro) para Recife em 1951 e
foi, portanto, um contemporâneo de Freire na época em
que ele escreveu sua dissertação.
Rosas é testemunha e participante da
institucionalização das forças democratizantes nos
rígidos corredores da Universidade brasileira dos anos 50.
Ele fala do começo de uma nova abordagem participatória
para pesquisar e expandir dentro da comunidade. Assim era a
comunidade intelectual na qual Freire formulou pela primeira vez
seu pensamento sobre as possibilidades de uma
transformação educacional. Ainda, ele é
rápido em observar que as conceitualizações de
Freire em uma prática educacional democratizante eram
distintivamente mais radicais do que às de seus
contemporâneos na universidade, que estavam longe de validar
as experiências, a cultura dos setores populares da maneira
que Freire propõe. Rosas ressalta as tarefas de Freire
enquanto trabalhava no serviço industrial social da escola
de Pernambuco (Sesi) durante os anos 50. Este papel de
liderança educacional, Rosas confirma, ofereceu a ele a
experiência de aprendizado de engajar em uma mudança
dialógica dentro dos Círculos de Pais e Professores,
começando como diretor da Divisão de Educação
e Cultura, tornando-se mais tarde, Superintendente. Rosas
também recalcula a trajetória do Movimento da Cultura
Popular (MCP) e os movimentos paralelos da Ação
Católica e Juventude Universitária Católica (JUC)
e o Movimento de Educação de Base (MEB), todos os quais
executaram papéis fundamentais na construção do
ímpeto do movimento popular do período que,
inevitavelmente, informou a conceitualização de Freire
da ação pedagógica para a transformação
social (LIX–LXIV).
Incentivado por forças progressivas mais radicais, que
desafiou a legitimidade de uma oligarquia anacrônica e uma
burguesia brasileira contraditória se esforçando para
estabelecer seu controle político, movimentos originados do
povo, como o Movimento da Cultura Popular (MCP) que emergiu.
Conseqüentemente, com a inauguração da
presidência de João Goulart em 1963, Freire foi chamado
para auxiliar o governo de Goulart em lançar a campanha da
alfabetização nacional. A campanha foi feita para
adotar seu eficiente método de ensino de ler e escrever,
enquanto edificava a consciência dos alunos adultos que
Freire começou a implementar no nordeste brasileiro nos anos
entrementes da escrita de sua dissertação. A
implementação do tão chamado “Método
Freire” como uma política de educação
nacional do governo deposto de Goulart resultaria em sua
perseguição e exílio logo após o golpe
militar de 1964.
Cristina Heiniger Freire, filha de Paulo Freire, oferece
algumas palavras emocionadas de lembranças carinhosas no
segundo testemunho chamado “Convivência com meus pais
(1947-64)”. Cristina evoca a essência da humildade de
Freire, contando a história – verídica das
memórias e vozes de sua infância – do engajamento
inicial de seus pais no movimento educacional popular no Brasil
do fim dos anos 40 ao fim dos anos 50, e a passagem de sua
família pelo trauma do exílio em 1964. Escrevendo em
abril de 1999 (dois anos após a morte de seu pai, em abril
de 1997) ela evita qualquer pretensão intelectual e faz
referência às últimas impressões de ser
criada sob o cuidado afetuoso e experiente do grande pedagogo. Ao
concluir seu breve testemunho, a filha de Freire se lembra de
como seu pai sempre costumava dizer, “Basta ser pais
para errar,” (p. xxxi) revelando a boa vontade do pai
de preservar uma abordagem auto-reflexiva, mesmo no poderoso
papel de pai. Através da vida e obra de Freire, ele nos
chamava para reconhecer nossa própria humanidade e a verdade
que aprendemos através dos erros, crescimento, progresso e
humanização. Antes de engrenar no texto teoricamente
denso que está por vir, o comentário de Cristina serve
para esboçar na cabeça do leitor a face sempre muito
humana que Paulo Freire sempre vestiu seu intelectualismo e sua
boa vontade de continuar a tributar suas asserções
teóricas na luz da crítica contemporânea e
interesses humanísticos universais.
A tese de Freire para uma cadeira na História da
Filosofia da Educação na Universidade de Pernambuco
– embora, evidentemente, um de seus primeiros escritos
– permanece dentro do estilo tradicional de narrativa do
eminente pedagogo e caminho argumentativo circular
característico. Ele reitera repetidamente pelo texto –
com a tranqüila firmeza do contador de histórias
convencido da necessidade de instilar a moral de sua narrativa
– o estado opressivo das relações
sócio-políticas brasileiras; as tendências
culturais paternalistas e fatalísticas que resulta de tal
contexto material-histórico, e os elementos básicos de
sua proposta para uma prática educacional que procura
transformar o status quo, para libertar as pessoas das
correntes de uma consciência colonizada subjugada em um
estado de conformidade, encaminhando-os as um engajamento ativo e
coletivo, – através de diálogo, reflexão
crítica e ação política – em um caminho
necessário rumo a democratização da sociedade.
Para desenvolver sua narrativa, ele adota, necessariamente,
uma postura dialética, expondo no início, com o brilho
para declarar sem pudores o que é mais óbvio, embora
mais imperativo: “O problema educacional brasileiro, de
importância incontestavelmente grande, é desses que
precisam ser vistos organicamente. Precisam ser vistos do ponto
de vista de nossa atualidade. No jogo de suas forças,
algumas ou muitas dentre elas, e antinomia umas com as
outras.” (p. 9-10). Para Freire, uma contradição
saliente dentro da realidade brasileira da época era a
co-existência das áreas “altamente
industrializadas” com aqueles que eram
“intensivamente subdesenvolvidos”. Portanto, dessas
condições contraditórias, desenvolve-se a
necessidade de criar “uma educação em prol do
desenvolvimento e da democracia” (p. 51).
Citando Corbisier (1956), Freire afirma nos primeiros
parágrafos de sua dissertação uma premissa
fundamental que tem marcado o trabalho de sua vida: uma
convicção inabalável nos dialetos da
existência humana: de ser e agir no mundo. Esta
transitividade da condição humana como Freire a
define, se refere à capacidade dos humanos de transformar e
ser transformado ao mesmo tempo. Freire escreve, “A
posição do homem, realmente, diante destes dois
aspectos de sua “moldura”, não é
simplesmente passiva. No jogo de suas relações com
esses mundos ele se deixa marcar, enquanto marca
igualmente.” (p. 10). Para esta conclusão, Freire
propõe uma abordagem que compromete os alunos em um processo
dialógico que os movimentos de um estado de imersão
dentro do mundo e de uma posição fatalística em
uma posição de imersão (para estar presente com o
mundo). Isto leva a uma compreensão autêntica e
dialética da realidade permitindo expectativa crítica e
ação transformadora. Em seu característico estilo
argumentativo circular, Freire volta para essa premissa em suas
observações conclusivas: reafirmando uma aderência
a um conceito de agência, ele insiste que certos processos
educacionais que contextualizam o aprendizado tornam
possível um vínculo orgânico com a realidade,
criando, portanto, a possibilidade do material histórico e
compreensão crítica dessa realidade, e então o
poder de transformá-la.
Da mesma maneira, Freire escreve de forma direta a respeito
dos imperativos do diálogo,
participação e relevância cultural
para que um processo educacional autêntico aconteça.
Estes são os três elementos fundamentais da pedagogia
libertadora apontada para a
“democratização” e superando as
condições nas quais os alunos/professores estão
submergidos e, portanto, suscetíveis à trincheira nos
estados da “consciência falsa” e um senso de
impotência em determinar seus destinos. Tomando a sociedade
brasileira de meio do século XX como ponto inicial de suas
postulações teóricas em educação e
democracia, Freire aponta para o “centralismo, verbalismo,
antidiálogo, autoritarismo e assistencialismo” como
manifestações da “inexperiência
democrática” dos brasileiros da época. Esta tese
é essencialmente um chamado para que os brasileiros ganhem
experiência democrática através de uma abordagem
diferente em educação. Por esse motivo, Freire insiste
em uma relação horizontal de respeito mútuo e
até mesmo, reciprocidade de troca de conhecimento entre os
educadores e os educandos; uma troca estabelecida em uma
reflexão crítica da realidade. Freire explica,
“Por isso mesmo é que falamos tanto, em termos
teóricos, na necessidade de uma vinculação da
nossa escola com a sua realidade local, regional e nacional, de
que haveria de resultar a sua organicidade e continuamos, na
prática, a nos distanciar dessas realidades todas e a nos
perder em tudo o que signifique antidiálogo,
antiparticipação, anti-responsabilidade.” (p.
13).
De acordo com esta perspectiva, um dos principais temas de
Educação e Atualidade brasileira é uma
crítica sólida de assistencialismo ao populismo
que se difundiu e as políticas sociais desenvolvimentalistas
que pôs em evidência a assistência aos
pobres e incultos, em vez de empobrecê-los. Esta
crítica do assistencialismo é uma
rejeição da teoria capital humana que denunciou as
reformas educacionais na região da América Latina na
época. Seu desprezo pelas abordagens parternalistas à
reforma social e educacional é demonstrada em sua
consistente afirmação por toda sua tese, sobre o
aforismo: “um trabalho com o povo e nunca sobre o povo ou
simplesmente para ele”, “Educação
democrática que fosse, portanto, um trabalho do homem com o
homem, e nunca um trabalho verticalmente do homem sobre o homem
ou de maneira assistencial do homem para o homem, sem ele.”
(p. 14). Para reforçar suas críticas adicionais sobre
as tendências paternalistas do paradigma do
desenvolvimentalismo dominante, Freire cita Vieira Pinto (um
diretor do ISEB): “ideologia do desenvolvimento, diz ele,
só é legítima quando exprime a consciência
coletiva, e revela os seus anseios em um projeto que não
é imposto, mesmo de bom grado às massas, mas
provém delas.” (p.22).
Freire observa que o Brasil foi, durante metade do século
XX, uma “sociedade em trânsito” de formas
antidemocráticas tradicionais, de relações sociais
e organização econômica de exportação
baseada em seu desenvolvimento anterior sob o colonialismo
voltado para a economia de mercado capitalista com mobilidade
social crescente, enfrentando a promessa de uma infinidade de
possibilidades democráticas. Na opinião de Freire,
Educação era a chave para mover a sociedade brasileira
em direção a relações de poder mais
democráticas dentro de uma economia capitalista em processo
de modernização. Para Freire, isto pediria que os
brasileiros mudassem de uma consciência que ele caracteriza
como transitivo-ingênua para uma
“consciência crítica transitiva”:
consciência articulada com prática. Ele apresenta a
noção da “dialogação” como o
método pedagógico voltado para essa
“consciência crítica transitiva” que em
outros textos ele desenvolve cuidadosamente em uma
noção de consciência crítica histórica
ou conscientização.
Evidentemente, para Paulo Freire, o vínculo essencial
entre teoria e prática já se tornou uma premissa
fundamental de suas idéias e feitos em prol da
transformação educacional no Brasil (e mais tarde em
todos os lugares). Com 38 anos, ele cita os 10 anos de
“intimidade” que ele já viveu voltado para as
mudanças educacionais com trabalhadores urbanos do SESI em
Recife como a base nas observações e
declarações feitas em sua tese. Sobre as
discussões democráticas com origens da classe
trabalhadora na qual ele participou como diretor do SESI, ele
enfatiza: “Nunca ditamos uma solução aos pais de
alunos de escolas sesianas.” (p.24). Esta é a
experiência concreta da qual Freire deduz a
inspiração e afirmação de sua tese para uma
abordagem participatória na educação e
ação política, enquanto faz referência aos
influentes líderes intelectuais da época. Novamente ele
cita Vieira Pinto para sublinhar seu argumento: “A
questão se faz clara. Não está, realmente, em que
as classes dirigentes, superpostas ao povo, lhe apresentem e lhe
imponham a solução de seus problemas. Solução
pensada por elas, distanciadas do povo. É preciso que ele
cresça em interferência dessa solução.”
(p. 23).
No segundo capítulo – baseado em uma análise
da formação histórico-cultural da consciência
brasileira (p. 59) – Freire disseca as condições
da inexperiência democrática do Brasil, devido a sua
herança colonial. Freire reivindica que este
“espírito democrático subdesenvolvido”
deve-se, em parte, por causa da colonização Portuguesa:
1) a expansão geográfica foi muito inexplorada pelos
Portugueses devido ao interesse principal da Coroa em fomentar o
comércio com o oriente; 2) o tamanho relativamente pequeno
de Portugal limitou sua capacidade de povoar e,
conseqüentemente, colonizar totalmente o Brasil. Resumindo,
ele diz: “Faltou-lhes organicidade com a
colônia.” E queriam somente explorar o país. Esta
postura particularmente colonizadora, Freire explica, leva à
emergência da Fazenda como a forma dominante de
comercialização da terra, e o estabelecimento de
relações hierárquicas de poder marcadas entre uma
classe oligárquica e camponeses e escravos que trabalhavam
na terra (p.65). Ele considera esta realidade social
estratificada verticalmente como uma dominação que
ultrapassa o diálogo e o autogoverno (p. 65). Entretanto, em
sua análise da formação social brasileira, é
notável que Freire não se aprofunda com êxito nas
repercussões da escravidão além de uma
consideração do tão chamado
“mandonismo” ou “paternalismo”
condescendente que resultou da longa situação do regime
escravocrata do Brasil. Dado o tempo em que ele estava escrevendo
este texto, o esperado era que ele não se engajasse em
nenhuma discussão sobre caráter complexo das
relações raciais no Brasil, e os efeitos nas
iniqüidades contemporâneas econômicas e sociais.
Esta é uma crítica a seu trabalho que Freire
enfrentaria no futuro.
No terceiro capítulo, Freire esboça as
condições básicas necessárias para que os
brasileiros deixassem as condições limitadores que ele
identifica no capítulo anterior, focando especificamente em
uma crítica sobre o sistema educacional contemporâneo,
enquanto propõe uma prática educacional democratizante.
A meta, de acordo com Freire – considerando a fase
história em que o Brasil se encontrava na época em que
ele escrevia – era criar uma nova disposição
mental crítica em uma parte dos brasileiros, que permitiria
que eles sobrepujassem suas inexperiências com o
comprometimento político e social (p. 79). Novamente ele
cita Mannheim ao insistir que somente através da
aquisição do “conhecimento concreto” os
brasileiros poderiam se comprometer com uma tributação
crítica de seu passado e, portanto, uma
transformação radical de seu presente e a
formação de um futuro mais democrático. (p.
82.)
A fim de concluir tal mudança ideológica, Freire
assegura que uma educação verdadeiramente
democratizante deve ser definida fora dos confins de uma
aprendizagem institucionalizada: “E é precisamente uma
educação assim que, ultrapassando as paredes das
escolas, precisa ser incrementada entre nós.” Por
outro lado, esta democratização da educação
brasileira não deveria ser realizada somente nas escolas,
como ele articula nesta visão de esperança por uma nova
escola: “Somente uma escola centrada democraticamente no
seu educando e na sua comunidade local, vivendo as suas
circunstâncias, integrada com seus problemas, levará os
seus estudantes a uma nova postura diante dos problemas de
contexto.” (p. 85). Trinta anos mais tarde, durante sua
liderança no Secretariado Municipal da Educação de
São Paulo (MSE-SP) no início dos anos 90, Freire e seus
colegas explorariam em prática este modelo da maneira como
ele foi incorporado no empenho do Partido dos Trabalhadores em
avançar a democratização das escolas públicas
no Brasil. Fundamental para este empenho era a
reorientação sistemática dos cursos oferecidos
pela escola baseado na realidade da comunidade a qual ela serve.
(Note 5)
As conceitualizações chave do pensamento de Freire
são apresentadas e exploradas do princípio ao fim deste
livro, e resumidas no capítulo conclusivo. O livro serve
como uma plataforma da qual Freire emite sua crítica
preliminar do sistema educacional brasileiro e aponta as
práticas predominantes que não estavam suprindo com
êxito a crescente demanda do país por uma força de
trabalho qualificada, que abasteceria os motores de uma economia
industrializada emergente. Para Freire, a precariedade do sistema
educacional não correspondia ao seu papel histórico
para inserir o “homem” brasileiro (e a mulher) em um
“ritmo democrático” cultural e político da
maneira que ele coloca. Freire fala sinceramente das
tendências sociais brasileiras em
“auto-selecionar” (discriminar) e hiperbolizar as
divisões de classe como contraditórias ao
desenvolvimento das forças democráticas no país. O
livro sublinha a permanente convicção do autor no papel
emancipatório do ato de saber. Enquanto designava
explicitamente as condições limitadas da
existência humana em um contexto social e momento
histórico propensos, Freire conclui a declaração
de sua posição pedagógica-filosófica
fundamental: aquele que propõe uma abordagem alternativa
para a educação que objetiva a
“libertação do homem dessas limitações
por meio da consciência das limitações” (p.
114).
Notas
1. MEC
(Ministério da Educação e Cultura),
Educação para o desenvolvimento, 1958, como
citado por Freire em Educação e atualidade
brasileira, p. 87.
2. A
escravidão foi abolida em 1887. A República e a
primeira Constituição Brasileira foi proclamada em
1891.
3. David N. Plank,
The Means of Our Salvation: Public Education in Brazil,
1930-1995 (Boulder, CO: Westview Press, 1996).
4. Esta resenha
foi escrita durante a deflagração da viciosa guerra do
governo dos Estados Unidos no Iraque.
5. Carlos Alberto
Torres, Maria del Pilar O’Cadiz e Pia Lindquist Wong,
Educacão e democracia: a praxis de Paulo Freire em
São Paulo, São Paulo: Cortez: Instituto Paulo
Freire, 2002.
Acerca da autora da resenha
Maria del Pilar O'Cadiz, Ph.D. é diretora
executiva da Collaborative After School Project
(CASP)–– um projeto de pesquisa e assitencia
técnica para os programas educacionais fora do horário
escolar –– na Universidade de California, Irvine. O
projecto CASP colabora com a Los Angeles County Office of
Education e o Departamento de Educacão do estado da
California no organizacao da formacao professional e a producao
de materias para orientar o trabalo do educadores no sector de
“After School.” Dr. O’Cadiz e autora com Pia
Lindquist Wong e Carlos Alberto Torres, do livro, Education
and Democracy Paulo Freire, Social Movements and Educational
Reform in São Paulo, (Westview, 1998), (traduzido ao
Portuguese)
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