martes, 1 de abril de 2025

Vizim, Marli e Silva, Shirley. (Orgs). (2003). Políticas Públicas: Educação, Tecnologias e Pessoas com Deficiência. Resenha por Anakeila Stauffer

 

Vizim, Marli e Silva, Shirley. (Orgs). (2003). Políticas Públicas: Educação, Tecnologias e Pessoas com Deficiência. Campinas: Mercado das Letras/Associação de Leitura do Brasil.

256 pp.
R$ 28     ISBN 85-7591-011-6

Resenha por Anakeila Stauffer
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

31 de maio de 2004

O livro Políticas Públicas: Educação, Tecnologias e Pessoas com Deficiência é um importante contributo para a área educacional – cuja história, tanto em sua vertente “regular” quanto na prática da chamada “educação especial”, é marcada pelas fortes implicações individuais e coletivas, políticas e públicas do binômio exclusão / inclusão.

Como expresso já no próprio título, o livro tem por eixo central a discussão das políticas públicas, que aparecem, nos nove artigos que compõem a obra, articuladas a questões tais como a função social da escola na visão da educação inclusiva, a representação da deficiência em nossa sociedade, a gestão democrática da escola, a formação de professores, as tecnologias educacionais.

Para tanto, esses artigos debruçam-se sobre documentos oficiais, revelando os paradoxos existentes entre os discursos oficiais e as realidades instituídas, retraçam o histórico do atendimento destinado às pessoas com deficiência, discutem a formação de professores num contexto de instituição de escolas inclusivas e examinam o recurso às tecnologias sob a perspectiva da ampliação dos direitos humanos.

Assim, no primeiro artigo, intitulado «Direitos Sociais e Política Educacional: alguns ainda são mais iguais que outros», Lisete Regina Gomes Arelaro se propõe a analisar as políticas educacionais da década de 1990, quando se introduz de forma brutal em nosso país a orientação neoliberal. A autora direciona sua reflexão para documentos oficiais – tais como a Emenda Constitucional 14/96, a Lei 9.424/96, a Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o Decreto 2.208/97 – examinando como a iniciativa legal compromete a democratização do acesso e da permanência dos alunos nas escolas, a qualidade de ensino e a gestão democrática da educação. Lisete Arelaro observa que, desde o primeiro mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), o Estado vai-se isentando de suas responsabilidades e reconceitualizando de tal forma a noção espaço de público que a prática das deliberações coletivas e de realização das funções públicas passam a ser dominadas pela ratio privada. O desengajamento do Estado na elaboração de políticas sociais mais amplas, tais como a educação por exemplo, tem como efeito o desenvolvimento de ações e estratégias sociais com caráter eminentemente compensatório, sem nenhuma preocupação com a alteração das relações políticas, sociais e econômicas. Assim, a inserção do país na lógica neoliberal acentua sua dívida para com as políticas públicas de cunho social e, ao som do falacioso discurso de modernização, acaba acentuando o caráter excludente de nossa sociedade.

O segundo artigo, «Educação do Portador de Deficiência no Novo Milênio: Dilemas e Perspectivas» tem por objetivo evidenciar alguns dos dilemas enfrentados pelas pessoas com deficiências na educação escolar. Visa especialmente o autor, Marcos José da Silveira Mazzotta, questionar as conseqüências de uma prática de classificação dicotômica e discriminatória que, na escola, resulta na criação de dois sistemas paralelos que só fazem exacerbar as limitações e prejuízos que a educação deveria debelar. Argumentando a impossibilidade de discernir as necessidades individuais, tanto quanto as respostas a elas fornecidas, do contexto social que as condiciona e as constrói, conclui que a identificação das exigências educacionais comuns e especiais só pode ser realizada nas situações concretas em que elas se apresentam ao contexto educacional. Considera, assim, que somente uma concepção abrangente de educação permite que não se negligenciem as potencialidades, nem tampouco as necessidades educacionais especiais que cada indivíduo pode vir a apresentar. E assinala que a efetivação de uma verdadeira inclusão, no que tange à educação comum, implica no respeito e na consideração da alteridade presente no conjunto dos cidadãos.

No terceiro texto da coletânea, «Educação Inclusiva: o avesso e o direito de uma mesma realidade», Marli Vizim examina a política educacional brasileira, à luz da reflexão sobre as representações sociais da deficiência, sobre a função social da escola e sobre as exigências da educação inclusiva. Considerando o caráter velado de muitos dos processos e formas de exclusão que marcam a sociedade brasileira, em seus mais distintos âmbitos, propõe-se a traçar um panorama histórico, no qual destaca a participação das próprias práticas pedagógicas formuladas pela educação especial – que, ao não considerarem a relevância da educação, das trocas culturais e do conhecimento na vida dos indivíduos que atendiam, acabaram por moldá-los como cidadãos de segunda categoria; e que, enfatizando as deficiências e não as necessidades de aprendizagem, contribuíram para perpetuar a exclusão, mascarand0-a e favorecendo a imagem de que a pessoa com deficiência é incapaz, incompleta, imperfeita, prejudicial ao convívio social. Finaliza a autora afirmando a necessidade que se efetivem políticas públicas inclusivas, em que do debate e da reflexão acerca da diversidade humana possam participar os mais distintos atores sociais, a fim de que, longe de continuarem servindo de motivos de exclusão, a diversidade e a diferença sejam entendidas como riqueza cultural, como próprias à condição do ser humano e, assim, como características a serem preservadas.

Shirley Silva é a autora do quarto artigo, «A Política Educacional Brasileira e as Pessoas com Deficiências. Como difundir o discurso de uma política pública de direitos e praticar a privatização», que enfoca a relação paradoxal entre a prática e o discurso nas políticas implementadas na área educacional para os indivíduos atendidos pela educação especial. Afirma a autora que o governo brasileiro é dúbio, pois se, no âmbito do discurso, reconhece a importância dos direitos humanos e do cidadão, na prática, desenvolve um conjunto de ações regidas pela lógica de mercado, na qual predomina a relação produtor-consumidor que implica na «privatização» do próprio sentido da cidadania. Shirley Silva argumenta que, em sua trajetória histórica, a educação especial sempre assumiu um caráter assistencialista, sendo organizada por instituições sem fins lucrativos e filantrópicas que acabaram por exercer uma forte autoridade sobre as decisões relativas às iniciativas de políticas públicas destinadas ao setor. A influência dessas instituições impediu, igualmente, que as políticas desenvolvidas respeitassem as distinções entre o público e o privado, fazendo prevalecer uma dinâmica de favorecimento e fragilizando a discussão acerca da igualdade e da justiça da oferta educacional. Além disso, a ação dessas instituições contribuiu ainda para adoção de práticas educativas que adotavam um ideal de homogeneização das diferenças, negando aos indivíduos a quem se dirigiam a constituição de subjetividades próprias, em nome da subserviência às normas de controle e disciplinamento de uma ordem social que repudia a alteridade. Finalizando, ressalta que as políticas públicas não devem se restringir a fornecer resoluções administrativas, devendo pensar também em construir um discurso educador. Nesta perspectiva, acredita a autora que a educação especial tem um papel importante, na medida em que pode contribuir para a construção de novos mecanismos culturais que efetivamente superem os preconceitos, abrindo espaço para a valorização das diferenças.

O texto de Humberto Lippo Pinheiro, «Políticas Públicas e as Pessoas Portadoras de Deficiência» parte do questionamento da adoção, pelas políticas públicas nas sociedades de massas, de uma perspectiva «generalista» que implica no não-atendimento, ou no atendimento precário de todos aqueles que divergem do padrão e da normalidade constituídas. Entende o autor que a reflexão sobre os direitos das pessoas com deficiência deve ser ampliada às mais distintas áreas, assim como ser objeto de atenção dos mais distintos órgãos governamentais. O autor traz como exemplo o trabalho da Fundação de Atendimento ao Deficiente e ao Superdotado no Rio Grande do Sul (Nova Faders) que, segundo ele, vem propondo a elaboração de políticas afirmativas de direitos humanos que levem à superação das formas tradicionais, paternalistas e assistencialistas das políticas públicas sociais, contribuindo para que as pessoas portadoras de deficiência, tanto quanto portadoras de altas habilidades, possam tornar-se sujeitos histórico-sociais que participem ativamente da discussão, da elaboração, do planejamento e da definição de ações públicas empreendidas – ou seja, contribuindo para que esses indivíduos se constituam em protagonistas de próprias suas histórias, colaborando também na construção de um estado mais democrático e participativo.

O sexto artigo, escrito por Rosângela Gavioli Prieto, «Formação de Professores para o Atendimento de Alunos com Necessidades Educacionais Especiais: Diretrizes Nacionais para a Educação Básica e a Educação Especial», sistematiza e examina algumas das atuais diretrizes para a formação de professores da educação básica e da educação especial, assim como as implicações dessas diretrizes para o atendimento do direito à educação. Recorre, em sua análise, às propostas dos variados documentos oficiais que regulamentam a questão da formação docente para, em seguida, apresentar suas considerações acerca daqueles que considera os principais problemas dessa formação. Assim, a autora reivindica a adoção de uma perspectiva formativa que se estenda da educação básica até o ensino superior; propõe a crítica à concepção assistencialista e médico-pedagógica que predominou historicamente, em detrimento de uma visão autenticamente educacional; sugere que os cursos de formação de professores preocupem-se em fornecer as bases teóricas para que cada professor possa, em sua prática, assegurar a aprendizagem dos alunos com necessidades educacionais especiais – que envolve não apenas os portadores de deficiências, mas todo indivíduo que apresente necessidade educacional especial, como os alunos com altas habilidades, ou que apresente alguma conduta típica. Por fim, conclui que a formação dos formadores é, ela também, de extrema relevância para a construção de referenciais de ação político-administrativa voltados para a educação para todos.

O sétimo artigo, de autoria de Tânia Regina Levada Neves, «Movimentos Sociais e Cidadania: quando a pessoa com deficiência mental fala na primeira pessoa do singular» tem por objetivo demonstrar que quando a pessoa com deficiência mental tem oportunidade de participar, sendo estimulada, apoiada, incentivada, ela elabora seu discurso na “primeira pessoa do singular”, ampliando seu conceito de cidadania, forjando a constituição do real conceito de inclusão. A falta de oportunidade de ser sujeito da própria história corrobora a idéia de que a pessoa com deficiência mental é incapaz. Esse estigma não só vem por parte da sociedade, mas acaba por constituir a própria subjetividade, a identidade desta pessoa. Para que a participação seja instituída, a autora destaca que os movimentos sociais organizados têm exercido um importante papel. Por movimento social, a autora conceitua a organização de grupos oprimidos que buscam formas de libertação dentro das relações sociais comandadas pela dialética opressão/libertação (Scherer-Warrem, 1987). Segundo a autora, atualmente, movimentos sociais organizados das pessoas com deficiência como as Organizações Não-Governamentais e os Conselhos de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência são relevantes. Estes últimos são objeto de estudo da autora que realiza uma análise comparativa destes, a fim de avaliar sua capacidade de atuação no que concerne à conquista da cidadania plena, garantindo a igualdade de oportunidade de participação e atendimento às necessidades de caráter coletivo. Para tanto, a autora coletou os textos legais de implementação dos Conselhos, comparando os objetivos, a composição e os procedimentos de escolha dos representantes. Após sua análise, Tânia Neves defende que a instituição de uma sociedade inclusiva deve constituir realidades onde as pessoas com deficiência possam participar do processo de construção de políticas públicas não segregacionistas, ressignificando sua imagem como um indivíduo no mundo, sendo participantes, agentes que buscam soluções coletivas para seus problemas.

O penúltimo artigo, «Para além das exclusões: por uma sociedade da informação rumo à sociedade do conhecimento e das diferenças», de autoria de Jorge Márcio Pereira de Andrade, tem por objetivo avaliar criticamente as implicações, em especial para as pessoas com deficiência, da adoção pela educação das tecnologias de comunicação e informação. O autor parte do suposto de que, contrariamente ao que muitos esperam, o simples acesso ao ciberespaço não implicará na ascensão imediata daqueles a quem a sociedade até aqui impôs uma posição de «sub-cidadãos» à condição de plena cidadania; não obstante, acredita que, não sendo as técnicas e as tecnologias apolíticas e neutras, seja possível superar o seu uso excludente e antiético dessas contribuições tecnológicas, construindo iniciativas coletivas e políticas de universalização e democratização dos novos meios e das novas tecnologias criadas pelo homem. Em outras palavras, o autor preocupa-se que as novas tecnologias não se constituam, no campo educacional, como modelos normatizadores que acabem por estigmatizar os indivíduos diferenciados ou as minorias rejeitadas, legitimando as relações de poder; e assinala que há recursos tecnológicos que contribuem para a equiparação de oportunidades e a efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, na medida em que estabelecem novas formas de comunicação para e sobre as deficiências, que possibilitam novas formas de domínio do mundo, que ampliam o espaço de socialização e de inserção cultural, que melhoram a qualidade de vida, tornando esses indivíduos mais independentes e autônomas. Assim, o autor defende a criação de valores que ultrapassem a lógica capitalista, gerando uma ética em que a coletividade supere a hiperindividualização narcisista e despotencializadora do diferente, do outro, de nossas alteridades, de modo a que as tecnologias possam prestar uma real contribuição para a demolição dessas barreiras instituídas.

O último texto, escrito por José Antonio dos Santos Borges e intitulado «Impactos das tecnologias de informação sobre os deficientes visuais», analisa o conjunto das representações historicamente instituídas sobre os deficientes visuais em diferentes sociedades, detendo-se particularmente sobre a adoção da técnica Braille – que, segundo o autor, ainda que tenha modificado radicalmente a participação das pessoas cegas na vida cultural, foi responsável pela introdução de uma exigência de transcrição que, dependendo de uma estrutura por demais cara e complexa, circunscreveu a educação convencional dos cegos ao âmbito de instituições caracterizadas por uma concepção fortemente assistencialista. O autor considera que a primeira grande mudança nesse quadro foi devida à introdução dos gravadores portáteis, que possibilitaram a criação, por parte de pequenas instituições, de bibliotecas sonoras de textos gravados em fitas cassete e assim conduziram a um tímido crescimento das condições de acesso cultural da população cega. Porém, segundo Santos Borges, data de 1994 a introdução da principal inovação tecnológica na vida dos deficientes visuais brasileiros e latino-americanos: a criação do sistema Dosvox, formulado pelo Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ. Utilizando a língua portuguesa, o sistema mostrou-se, ainda, adequado à realidade brasileira na medida em que lançou mão de recursos bastante baratos e que sua utilização revelava-se bastante simples. Disseminando a cultura da computação, o Dosvox propiciou, segundo o autor, a multiplicação de programas que facilitam o acesso do deficiente visual ao mundo da tecnologia. O artigo se encerra com uma crítica à ausência de políticas públicas preocupadas com a ampliação do acesso às tecnologias, considerando que, a socialização das tecnologias depende do compromisso, por parte de toda a sociedade, com a criação, a valorização, a manutenção e o financiamento de produtos e procedimentos que proporcionem aos deficientes uma vida mais autônoma e integrada à sociedade.

Assim, o grande mérito da obra é submeter os temas da atualidade da educação especial a uma reflexão política mais ampla, situando-os frente a questões como a educação democrática, a resistência à privatização do Estado, o respeito aos direitos humanos e do cidadão. Sem dúvida emerge, dessa reflexão, uma educação especial revitalizada; mas também emerge, ao mesmo tempo, a certeza de que a área é um locus imprescindível de elaboração de políticas públicas.

Acerca da autora da resenha

Anakeila Stauffer. Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutoranda em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.


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