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Linhares, Ângela Maria Bessa. (2003). O tortuoso e
doce caminho da sensibilidade: um estudo sobre arte e
educação. 2 ed. Ijuí, RS: Ed.
Unijuí.
256 p.
ISBN 85-7429-055-66
Resenha realizada por Luciana Gruppelli Loponte
Universidade de Santa Cruz do Sul
28 de Julho de 2004
Quem já viveu o cotidiano da escola, sabe das
pérolas que ali se encerram, dos acontecimentos e
histórias que vivemos e ouvimos nos corredores, nas salas de
aulas, no pátio da escola. “Pérolas” pelo
seu brilhantismo inusitado, pela sua surpreendente inventividade.
Dizeres, falas de alunos e alunas, professoras, mães,
acontecimentos diversos. Trazer a nós, leitores, estas
“pérolas de inigualável beleza”, como a
autora define a vida na escola, é um dos grandes
méritos deste livro que busca em meio à aridez da
escola pública, onde, afinal, pode estar a arte na escola. O
objetivo do estudo, realizado em uma dissertação de
mestrado, era “tentar compreender as
representações de estudantes, pais e educadores de
três escolas públicas de Fortaleza, sobre o lugar onde
dizem estar a arte na escola” (p.18).
Ângela Linhares utiliza-se de uma linguagem poética
e de um corpo teórico baseado principalmente na teoria
crítica da Escola de Frankfurt – basicamente Adorno e
Benjamin – para percorrer o caminho dos rituais onde se diz
que está a arte na escola ou “cinco fugas para uma
dimensão desejante”. Entrelaçada no texto,
está a sua biografia de educadora e de artista, fortemente
implicada em todas as questões ali discutidas.
Metodologicamente, procura desconstruir ou estranhar o cotidiano
familiar da escola, através da interpretação dos
seus rituais – aqui um termo tomado emprestado do campo
antropológico – ou “os fios (tênues?) por
onde escorre o tortuoso e doce caminho da sensibilidade”
(p.33).
A arte seria um artigo de luxo na escola? Por que aos alunos
de escolas públicas privilegia-se essa preparação
para a “vida” ou para o “mundo do
trabalho”, baseada em um tipo de racionalidade instrumental
que exclui a arte como modo de conhecer? “O que eu tentava
radicalizar (ainda uma vez o sentido é ir à raiz) era
que há dimensões sonegadas (corpos mutilados) na escola
e que a arte é um dos modos de se poder trabalhar com a
razão de um modo mais totalizador, com a esfera do sentir e
do fazer de um modo crítico. As outras questões (a
utopia, a cultura, o trabalho, a omnilateralidade, enfim) foram
desdobramentos da idéia principal” (p.54).
Os rituais onde se diz que está arte da escola são
cinco, segundo a autora: o pátio, o corredor, a sala de
aula, o fundo de quintal e a rua. Dois destes rituais estão
na verdade, fora do espaço escolar e emergiram
principalmente a partir das falas dos alunos.
O pátio é o lugar da liberdade na escola. E é
interessante acompanhar a reflexão sobre a própria
linguagem utilizada ao se referir ao pátio. Nunca as
professoras dizem que as crianças estão
“liberadas para as aulas”, mas sim “liberadas
para o pátio”. A escola é mesmo esse local
contraditório, feito de espaços de liberdade e de
prisão. No pátio se pode rir, as crianças
estão “soltas”, o tempo passa voando, há um
“não-fazer”. No pátio a arte se mostra nos
momentos das comemorações das datas cívicas, nas
festividades escolares. Nas falas das professoras, quase todas
sem formação específica na área, as datas
festivas aparecem como a principal pauta para a arte na escola.
É aquela chamada arte escolar, aquela que só existe ali
dentro, apartada da arte feita por artistas ou que é
celebrada pelo mundo da arte há tanto tempo. A arte, esse
espaço de liberdade, esse que está nas “coisas
que a gente inventa” , como disse um aluno
entrevistado, é pedagogizado, aprisionado.
Nos corredores, se passa, se atravessa, é um lugar para
não ficar. Mas é nos corredores que estão os
cartazes, aqueles feitos no capricho, a arte, enfim, que se
mostra ao público. Mas quem fez? Todos apontam: “Foram
as professoras que fizeram!”. As crianças não
fazem arte, ao menos algo que se considere tão bom para
mostrar, para “fazer bonito” aos que passam. Afinal,
por que ia se querer desperdiçar material com aquela
incompreensível expressividade infantil? Na esteira desse
pensamento, está a arte concebida como um dom que ilumina
apenas alguns, até aquelas professoras mais
“habilidosas”, que acabam tomando para si esta
atividade estética na escola. Surge aqui, novamente, um
problema que assola o ensino de arte em todo país: a falta
de professores com alguma formação específica em
artes. A fala de uma das professoras é exemplar: É
Educação Artística. Pessoa para isso mesmo a
escola não tem. A gente improvisa (p.88). Arte como
improviso, como coisa para poucos, essa coisa pouco
“útil” no sentido mesmo de pouco
utilitário, pouco importante; é assim que a arte vai
aparecendo nas falas dos personagens que povoam a escola. Uma
mãe de aluno pergunta: Arte é aquele conhecimento
mais da delicadeza, não é? Fazer florzinha miudinha de
papel, cinzeiro no dia das mães... (...) Arte é um
que-fazer assim que inventa uma alegriazinha, a senhora
compreende? Quer dizer, trabalho mesmo não é, que
trabalho é como uma dor. E escola também. Pros pobres
é. A gente acostuma porque é a vida e...vai indo, vai
indo... (p.99).
A fala dessa mãe é uma das pérolas, que sozinha
vale a leitura do livro. A definição da arte como
“essa coisa mais da delicadeza” ou aquilo que
“inventa uma alegriazinha” faz a gente pensar que
lugar a arte tem na vida das pessoas, ou que lugar a escola deixa
para a arte, afinal. O mundo do trabalho e da escola tem mesmo
que ser só dor?
Na sala de aula está, enfim, o coração da
escola. É ali que as coisas acontecem, onde tem
matéria, tem a explicação da professora, o quadro
como altar e o livro como coisa rara. Na sala de aula o tempo
custa mais a passar, a hora do recreio demora e não é
lugar de brincadeira. A arte ali tem a cara daquele artesanato
escolar, algo como trabalhos feitos de palitos de picolé e
palhinhas coloridas, pouco a ver com a arte pulsante e
anônima das feiras do Nordeste. A música na escola
adquire também o formato pedagogizado das músicas de
comando, mais legitimado do que os cantos de romaria que as
professoras sabem de cor, mas que não deixam chegar à
sala de aula.
E no fundo do quintal? Nesse ritual, fora da escola, brinca-se
de faz-de-conta, cada um vira uma coisa, a gente inventa: Vai
acontecendo tudo ali, aquela história, como um sonho meio
acordado. O legal é que a gente vai fazendo a história
na hora. A história é a brincadeira toda –
nas falas dos alunos, vai-se reconfigurando esse espaço
mágico do fundo do quintal, um espaço tão livre
quanto o pátio, e fora do ambiente escolar. A arte,
então, está ali? A autora pergunta: “Quando a
arte que poderia estar na escola foi se refugiar no fundo do
quintal, o que se pode inferir do desejo das crianças? Por
que ele foi instalar-se e fazer sua cabana em outro lugar?”
(p.148). Para ela, é no campo da dimensão desejante
(esfera da estética, da ética, da moral), o lugar do
enfrentamento e o questionamento da racionalidade dominante, que
é, pelo visto, a que ainda prevalece na escola.
Na rua se canta, se dança capoeira, “funk”,
“break”, a dança baiana. Outro espaço de
liberdade fora da escola? Aqui a autora traz Pasolini para dizer
que a arte deveria trazer essa experiência direta com o real
que se desvela com um exercício de decifração dos
vários signos da realidade. Valorizar a experiência, em
suas várias formas expressivas, para o trabalho da
crítica da realidade. E aí, Ângela Linhares
pergunta: “poder-se-ia, por esse caminho da arte, entrar na
escola e romper esse modo de forjar subjetividade, alimentando-a
com outras matrizes?” (p. 163).
A segunda parte do livro tem um peso mais teórico e se
chama “Elementos para uma concepção mais
totalizadora da razão ou de como o sentimento entra na
história”. Os títulos dos capítulos que
compõem esta parte são igualmente atrativos: “A
consciência reificada ou de como na história gente vira
coisa e coisa fica parecendo gente” e “Arte como
forma de conhecer o possível diálogo entre pares e
textos”. Aqui, segundo a própria autora, ela faz uma
reflexão mais aprofundada sobre o processo de
reificação da consciência no capitalismo, amparada
nos estudos estéticos de Hegel e Adorno.
Poeticamente, diz Carlos Drummond de Andrade: “o homem
é todo certeza, não sabe sofrer”. O
não-sofrer seria uma conformação da nossa esfera
do sentir a só um tipo de racionalidade possível? Com
as lentes da teoria crítica da Escola de Frankfurt,
Ângela Linhares critica um modo de conhecer que exclui a
arte e a sensibilidade, um modo de conhecer advindo de um certo
desencantamento do mundo. A arte, nesse sentido, poderia
ajudar-nos (e a escola) a construir um paradigma social mais
amplo. A estética nos lembra de dimensões esquecidas,
sonegadas, dimensões que envolvem sentimento e razão,
paixão e expressão, conhecimento e
imaginação. Com a análise dos rituais e dos
lugares onde se diz que a arte está na escola, a autora
propõe a arte como “um modo de lidar com
ação simbólica, tocando dimensões da
sensibilidade não mobilizadas costumeiramente (e de certo
modo) na escola” (p.204).
A arte ainda é aquela atividade que se faz
“entre” uma coisa mais importante e outra, para
relaxar, para descansar das atividades mais sérias e
realmente relevantes na escola. Por que o simbólico, o
sensível, o estético não pode tomar um lugar de
maior destaque dentro desse espaço chamado escola, que
às vezes quase se confunde com uma prisão? O apelo da
autora, em coro com os frankfurtianos, é que Auschwitz
não se repita, que a escola não se amordace no eterno
slogan de “preparar para a vida”, entendendo vida
como o mundo de trabalho, aquele que no dizer da mãe de um
aluno, é só dor.
No final do percurso do livro, chamado pela própria
autora como o tortuoso e doce caminho da sensibilidade –
caminho em si, já contraditório, cheio de
ambigüidades (como é a própria escola) –,
advoga não tanto uma nova concepção de arte na
escola, mas uma nova concepção de criança. Mais do
que perguntar sobre o lugar que a arte ocupa na escola, a autora
acabou pensando em uma nova concepção de sujeito das
práticas educativas: “Ao pensar o caminho tortuoso e
doce da sensibilidade tentei trazer a centralidade da
noção de sujeito (omnilateral) às práticas
educativas na escola. Seria possível?” (p.250). A
pergunta encerra o livro. Em tempos de identidades fragmentadas e
de questionamento da soberania do sujeito, talvez essa
questão ainda permaneça sem resposta. No entanto, a
reflexão profunda sobre os lugares possíveis e até
improváveis do lugar onde se diz que está a arte na
escola pode servir como um alerta ao campo da educação
– por vezes, ainda tão racional – de que arte
é bem mais do que apenas “inventar uma
alegriazinha”...
A autora da resenha
Luciana Gruppelli Loponte é professora de arte no
Departamento de Educação da Universidade de Santa Cruz
do Sul (UNISC), no Rio Grande do Sul. É Mestre em
Educação (UNICAMP, 1998) e atualmente é doutoranda
em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Áreas de interesse: arte, educação,
formação docente, relações de
gênero.
Reseñas Educativas/ Resenhas Educativas
publica reseñas de libros sobre educación, cubriendo
tanto trabajos académicos como practicas educativas.
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