martes, 1 de abril de 2025

Linhares, Ângela Maria Bessa. (2003). O tortuoso e doce caminho da sensibilidade: um estudo sobre arte e educação. 2 ed. Resenha realizada por Luciana Gruppelli Loponte

 

Linhares, Ângela Maria Bessa. (2003). O tortuoso e doce caminho da sensibilidade: um estudo sobre arte e educação. 2 ed. Ijuí, RS: Ed. Unijuí.

256 p.
ISBN 85-7429-055-66

Resenha realizada por Luciana Gruppelli Loponte
Universidade de Santa Cruz do Sul

28 de Julho de 2004

Quem já viveu o cotidiano da escola, sabe das pérolas que ali se encerram, dos acontecimentos e histórias que vivemos e ouvimos nos corredores, nas salas de aulas, no pátio da escola. “Pérolas” pelo seu brilhantismo inusitado, pela sua surpreendente inventividade. Dizeres, falas de alunos e alunas, professoras, mães, acontecimentos diversos. Trazer a nós, leitores, estas “pérolas de inigualável beleza”, como a autora define a vida na escola, é um dos grandes méritos deste livro que busca em meio à aridez da escola pública, onde, afinal, pode estar a arte na escola. O objetivo do estudo, realizado em uma dissertação de mestrado, era “tentar compreender as representações de estudantes, pais e educadores de três escolas públicas de Fortaleza, sobre o lugar onde dizem estar a arte na escola” (p.18).

Ângela Linhares utiliza-se de uma linguagem poética e de um corpo teórico baseado principalmente na teoria crítica da Escola de Frankfurt – basicamente Adorno e Benjamin – para percorrer o caminho dos rituais onde se diz que está a arte na escola ou “cinco fugas para uma dimensão desejante”. Entrelaçada no texto, está a sua biografia de educadora e de artista, fortemente implicada em todas as questões ali discutidas. Metodologicamente, procura desconstruir ou estranhar o cotidiano familiar da escola, através da interpretação dos seus rituais – aqui um termo tomado emprestado do campo antropológico – ou “os fios (tênues?) por onde escorre o tortuoso e doce caminho da sensibilidade” (p.33).

A arte seria um artigo de luxo na escola? Por que aos alunos de escolas públicas privilegia-se essa preparação para a “vida” ou para o “mundo do trabalho”, baseada em um tipo de racionalidade instrumental que exclui a arte como modo de conhecer? “O que eu tentava radicalizar (ainda uma vez o sentido é ir à raiz) era que há dimensões sonegadas (corpos mutilados) na escola e que a arte é um dos modos de se poder trabalhar com a razão de um modo mais totalizador, com a esfera do sentir e do fazer de um modo crítico. As outras questões (a utopia, a cultura, o trabalho, a omnilateralidade, enfim) foram desdobramentos da idéia principal” (p.54).

Os rituais onde se diz que está arte da escola são cinco, segundo a autora: o pátio, o corredor, a sala de aula, o fundo de quintal e a rua. Dois destes rituais estão na verdade, fora do espaço escolar e emergiram principalmente a partir das falas dos alunos.

O pátio é o lugar da liberdade na escola. E é interessante acompanhar a reflexão sobre a própria linguagem utilizada ao se referir ao pátio. Nunca as professoras dizem que as crianças estão “liberadas para as aulas”, mas sim “liberadas para o pátio”. A escola é mesmo esse local contraditório, feito de espaços de liberdade e de prisão. No pátio se pode rir, as crianças estão “soltas”, o tempo passa voando, há um “não-fazer”. No pátio a arte se mostra nos momentos das comemorações das datas cívicas, nas festividades escolares. Nas falas das professoras, quase todas sem formação específica na área, as datas festivas aparecem como a principal pauta para a arte na escola. É aquela chamada arte escolar, aquela que só existe ali dentro, apartada da arte feita por artistas ou que é celebrada pelo mundo da arte há tanto tempo. A arte, esse espaço de liberdade, esse que está nas “coisas que a gente inventa” , como disse um aluno entrevistado, é pedagogizado, aprisionado.

Nos corredores, se passa, se atravessa, é um lugar para não ficar. Mas é nos corredores que estão os cartazes, aqueles feitos no capricho, a arte, enfim, que se mostra ao público. Mas quem fez? Todos apontam: “Foram as professoras que fizeram!”. As crianças não fazem arte, ao menos algo que se considere tão bom para mostrar, para “fazer bonito” aos que passam. Afinal, por que ia se querer desperdiçar material com aquela incompreensível expressividade infantil? Na esteira desse pensamento, está a arte concebida como um dom que ilumina apenas alguns, até aquelas professoras mais “habilidosas”, que acabam tomando para si esta atividade estética na escola. Surge aqui, novamente, um problema que assola o ensino de arte em todo país: a falta de professores com alguma formação específica em artes. A fala de uma das professoras é exemplar: É Educação Artística. Pessoa para isso mesmo a escola não tem. A gente improvisa (p.88). Arte como improviso, como coisa para poucos, essa coisa pouco “útil” no sentido mesmo de pouco utilitário, pouco importante; é assim que a arte vai aparecendo nas falas dos personagens que povoam a escola. Uma mãe de aluno pergunta: Arte é aquele conhecimento mais da delicadeza, não é? Fazer florzinha miudinha de papel, cinzeiro no dia das mães... (...) Arte é um que-fazer assim que inventa uma alegriazinha, a senhora compreende? Quer dizer, trabalho mesmo não é, que trabalho é como uma dor. E escola também. Pros pobres é. A gente acostuma porque é a vida e...vai indo, vai indo... (p.99).

A fala dessa mãe é uma das pérolas, que sozinha vale a leitura do livro. A definição da arte como “essa coisa mais da delicadeza” ou aquilo que “inventa uma alegriazinha” faz a gente pensar que lugar a arte tem na vida das pessoas, ou que lugar a escola deixa para a arte, afinal. O mundo do trabalho e da escola tem mesmo que ser só dor?

Na sala de aula está, enfim, o coração da escola. É ali que as coisas acontecem, onde tem matéria, tem a explicação da professora, o quadro como altar e o livro como coisa rara. Na sala de aula o tempo custa mais a passar, a hora do recreio demora e não é lugar de brincadeira. A arte ali tem a cara daquele artesanato escolar, algo como trabalhos feitos de palitos de picolé e palhinhas coloridas, pouco a ver com a arte pulsante e anônima das feiras do Nordeste. A música na escola adquire também o formato pedagogizado das músicas de comando, mais legitimado do que os cantos de romaria que as professoras sabem de cor, mas que não deixam chegar à sala de aula.

E no fundo do quintal? Nesse ritual, fora da escola, brinca-se de faz-de-conta, cada um vira uma coisa, a gente inventa: Vai acontecendo tudo ali, aquela história, como um sonho meio acordado. O legal é que a gente vai fazendo a história na hora. A história é a brincadeira toda – nas falas dos alunos, vai-se reconfigurando esse espaço mágico do fundo do quintal, um espaço tão livre quanto o pátio, e fora do ambiente escolar. A arte, então, está ali? A autora pergunta: “Quando a arte que poderia estar na escola foi se refugiar no fundo do quintal, o que se pode inferir do desejo das crianças? Por que ele foi instalar-se e fazer sua cabana em outro lugar?” (p.148). Para ela, é no campo da dimensão desejante (esfera da estética, da ética, da moral), o lugar do enfrentamento e o questionamento da racionalidade dominante, que é, pelo visto, a que ainda prevalece na escola.

Na rua se canta, se dança capoeira, “funk”, “break”, a dança baiana. Outro espaço de liberdade fora da escola? Aqui a autora traz Pasolini para dizer que a arte deveria trazer essa experiência direta com o real que se desvela com um exercício de decifração dos vários signos da realidade. Valorizar a experiência, em suas várias formas expressivas, para o trabalho da crítica da realidade. E aí, Ângela Linhares pergunta: “poder-se-ia, por esse caminho da arte, entrar na escola e romper esse modo de forjar subjetividade, alimentando-a com outras matrizes?” (p. 163).

A segunda parte do livro tem um peso mais teórico e se chama “Elementos para uma concepção mais totalizadora da razão ou de como o sentimento entra na história”. Os títulos dos capítulos que compõem esta parte são igualmente atrativos: “A consciência reificada ou de como na história gente vira coisa e coisa fica parecendo gente” e “Arte como forma de conhecer o possível diálogo entre pares e textos”. Aqui, segundo a própria autora, ela faz uma reflexão mais aprofundada sobre o processo de reificação da consciência no capitalismo, amparada nos estudos estéticos de Hegel e Adorno.

Poeticamente, diz Carlos Drummond de Andrade: “o homem é todo certeza, não sabe sofrer”. O não-sofrer seria uma conformação da nossa esfera do sentir a só um tipo de racionalidade possível? Com as lentes da teoria crítica da Escola de Frankfurt, Ângela Linhares critica um modo de conhecer que exclui a arte e a sensibilidade, um modo de conhecer advindo de um certo desencantamento do mundo. A arte, nesse sentido, poderia ajudar-nos (e a escola) a construir um paradigma social mais amplo. A estética nos lembra de dimensões esquecidas, sonegadas, dimensões que envolvem sentimento e razão, paixão e expressão, conhecimento e imaginação. Com a análise dos rituais e dos lugares onde se diz que a arte está na escola, a autora propõe a arte como “um modo de lidar com ação simbólica, tocando dimensões da sensibilidade não mobilizadas costumeiramente (e de certo modo) na escola” (p.204).

A arte ainda é aquela atividade que se faz “entre” uma coisa mais importante e outra, para relaxar, para descansar das atividades mais sérias e realmente relevantes na escola. Por que o simbólico, o sensível, o estético não pode tomar um lugar de maior destaque dentro desse espaço chamado escola, que às vezes quase se confunde com uma prisão? O apelo da autora, em coro com os frankfurtianos, é que Auschwitz não se repita, que a escola não se amordace no eterno slogan de “preparar para a vida”, entendendo vida como o mundo de trabalho, aquele que no dizer da mãe de um aluno, é só dor.

No final do percurso do livro, chamado pela própria autora como o tortuoso e doce caminho da sensibilidade – caminho em si, já contraditório, cheio de ambigüidades (como é a própria escola) –, advoga não tanto uma nova concepção de arte na escola, mas uma nova concepção de criança. Mais do que perguntar sobre o lugar que a arte ocupa na escola, a autora acabou pensando em uma nova concepção de sujeito das práticas educativas: “Ao pensar o caminho tortuoso e doce da sensibilidade tentei trazer a centralidade da noção de sujeito (omnilateral) às práticas educativas na escola. Seria possível?” (p.250). A pergunta encerra o livro. Em tempos de identidades fragmentadas e de questionamento da soberania do sujeito, talvez essa questão ainda permaneça sem resposta. No entanto, a reflexão profunda sobre os lugares possíveis e até improváveis do lugar onde se diz que está a arte na escola pode servir como um alerta ao campo da educação – por vezes, ainda tão racional – de que arte é bem mais do que apenas “inventar uma alegriazinha”...

A autora da resenha

Luciana Gruppelli Loponte é professora de arte no Departamento de Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), no Rio Grande do Sul. É Mestre em Educação (UNICAMP, 1998) e atualmente é doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Áreas de interesse: arte, educação, formação docente, relações de gênero.


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